O
dia parecia ter começado perfeito. Apenas parecia por alguns segundos, até o
vizinho começar a martelar a parede que dividia os dois quartos. Pablo tinha
uma terrível mania de acordar de bom humor todos os dias. Ele sempre dizia que
para começar o dia bem, tinha que acordar cedo. E ele realmente acordava cedo.
Terrivelmente eufórico e cheio de vida, cantarolando, batendo nas coisas,
abrindo e fechando portas e gavetas. Cedo escancarava sua janela e gritava um
estridente – Bom dia! Parecendo uma ratazana gigante, gruindo um som de besta
ferida. Enquanto eu ainda tentava escrever alguma coisa. Depois de tantas horas
procurando alguma inspiração e quando penso que vou chegar lá. Ele começa a
distribuir sua euforia pela vida. Uma vida medíocre, igual a minha. Sai do quarto e fui até sua porta, três
batidas na porta. E o sujeito abriu a porta com um sorriso branco e idiota.
-
Lindo dia Jeux! Ele disse.
Estufando o peito, como se quisesse roubar
todo o ar fresco da manhã. Precisava terminar com aquela tortura.
-
Pablo, o vizinho do numero 2, morreu! Eu disse.
-
Como? Ninguém me avisou.
-
Ele morreu ontem, e a mulher dele esta tentando descansar.
O
Sujeito, foi murchando o sorriso, dava pra ver o constrangimento em seu rosto.
Sua cor mudou como se ele estive nauseado.
-
Que horror. Ele disse.
-
Pode fazer menos barulho? Eu disse.
-
Claro, meu amigo - ele disse -, Eu não sabia.
-
Tudo bem, mas agora você sabe!
Dei
as costas e voltei para o meu quarto, satisfeito, devo ter dado uma leve
contração muscular em meus lábios enquanto me distanciava. Quase um sorriso,
pequeno e amarelo é a expressão da vitoria. Realmente parecia ser um lindo dia.
Voltei para o quarto e sequei o resto de vinho que ainda tinha na garrafa.
Fazia tempo que não me sentia tão satisfeito. No quarto ao lado ficou um
silencio de velório. Pensei, - É perfeito!
Voltei
para maquina, à folha em branco continuava me olhando. Mas não conseguia
escrever, o silencio começou a incomodar. Comecei a pensar no que ele podia
estar fazendo. Vai ver ele sofreu um infarto por causa da noticia e esta morto.
Nada de som vinha do outro lado da parede.
Apoiei meus cotovelos na mesa e fiquei um pouco segurando minha cabeça
com as mãos. Minha consciência começou a pesar, levantei a cabeça e olhei para
um lado e outro. O silencio ainda persistia. Não podia continuar naquele silencio, peguei a
caneta e comecei a tamborilar na mesa, mas não adiantava. Continuava pensando
porque ele não fazia nenhum barulho, nem um pigarro, uma tosse matutina. Aquilo
realmente começou a me deixar muito irritado. - O que o idiota estava fazendo?
Voltei
à porta do quarto dele, e expliquei que tinha sido uma brincadeira.
-
Que bom! Ele disse, abrindo aquele sorriso branco.
-
Sim, foi só uma piada. Eu disse.
-
Mas hoje é primeiro de abril?
Ele
achava que era uma piada de primeiro de abril, o sujeito estava sempre perdido.
Bom eu também não fazia a menor noção de que dia era. Não importa.
-
Não Pablo, hoje não é primeiro de abril.
- E
porque você fez isso?
- É
que olhei errado na folhinha.
-
legal! Mas você é bem desatento mesmo.
- Eu
sei! Eu sei!
Voltei
para o quarto, e ele começou a bater na parede e cantarolar. Tínhamos a nossa
rotina salva. Minha cabeça começou a doer. Uma enxaqueca terrível. Comecei a
encher meus ouvidos com buchas de algodão. Mas não adiantava. Cada vez o som ia
aumentando. Eu sentia como se ele estivesse batendo com seu martelo direto em
minha cabeça, e aquele sorriso branco de bom rapaz, enquanto ia batendo o
martelo de forma compassada e rítmica.
Seus
comentários idiotas, sobre a possibilidade de eu conseguir algum emprego.
Aquilo sim me deixava louco, como ele podia cogitar a idéia de eu me tornar
mais um zumbi, andando para baixo e para cima, como um tipo qualquer. Ele
realmente ainda não tinha entendido as reais necessidades de um homem. Pablo se
achava um bom pintor, que pintava com profissionalismo. Nunca tinha visto um
atelier de pintura como o quarto dele, parecia um hospital, completamente
asséptico, limpo. Ele sabia tudo, tinha a técnica, mas lhe faltava alma. Trabalhava
oito horas por dia como atendente na farmácia da esquina. Um pintor não deveria
trabalhar de atendente numa farmácia, ele não usava drogas, não bebia, não
fumava. É provável que ainda fosse virgem, e passasse a maior parte do tempo
olhando televisão. O sujeito fazia a barba todos os dias e usava camisas
brancas e limpas. Qual o pintor consegue ter uma peça de roupa sem tinta, onde
estava a loucura dele.
Meu
quarto já era bem diferente, parecia uma zona de conflito, onde algumas
granadas aviam sido detonadas, o caos estava instalado em todos os cantos,
livros, papeis, garrafas, resto de comida bolorenta, roupa suja, moveis
quebrados. Meus moveis, havia comprado em um brick, como minhas roupas que
também era de segunda mão, e não tinha nada a ver com modismo, apesar de ter
entrado para a moda atual de uma forma não premeditada. No fundo dos meus
bolsos tinha a justificativa mais justa. Não tinha nada, e esta era a situação.
O dinheiro andava cada vez mais escasso, tinha apenas o suficiente para o vinho
e o pão. Acho que por isso que ele achava que eu era um tipo de cristão. Mas o
mais incrível, naquele quarto tinha sido um cogumelo, que surgiu no degrau da
porta que levava ao banheiro. Um dia olhei para a porta e lá estava, algo
crescendo no canto do degrau, numa rachadura, no piso de cimento queimado. A
cada hora ele ia se modificando, crescendo de forma alucinante, até surgir à
parte de cima como um guarda chuva fechado, que aos poucos foi se abrindo, e
descendo uma renda. Um lindo cogumelo branco e rendado. Pablo um dia quase o amassou com a sola de seu
sapato limpo, ele tinha vindo me trazer um livro (O grande carpinteiro), um
livro sobre a vida de Jesus Cristo. Ele sabia que gostava de livros, e achou
que deveria ler aquele livro. Mas isto nunca aconteceu, e o livro continua na
estante de lata, logo abaixo do pé direito, para dar equilíbrio a estante. Um
carpinteiro equilibrando uma estante de lata parecia algo com um sentido
mítico. Perdido naquele quarto escuro.
Três
batidas na porta tiraram a minha atenção do quarto ao lado, porque as pessoas
dão três batidas nas portas. Que falta de identidade é tudo massificado e
padronizado. Hum, eu também dou três batidas na porta, isto é mal. Fui até a
porta e para minha surpresa, era a vizinha do quarto 2.
-
Bom dia Jeux! Ela disse.
-
Bom dia Raquel! Eu disse.
- Você
já foi à padaria hoje?
-
Ainda não, Raquel.
- Me
faz um favor, eu preciso de um litro de leite.
-
Claro, depois eu deixo no seu quarto.
-
Obrigada.
Raquel
tinha algo de especial. Ela nunca incomodava sempre discreta. O que tinha
acontecido para ela me incomodar àquela hora? , fiquei imaginando. Enquanto
vestia a minha calça. Bom, já estava na hora de ir à padaria mesmo. Sempre
gostei de fazer minhas compras logo cedo.
Enquanto a padaria ainda estava deserta, não gosto de filas e nem de
ficar conversando, por obrigação. Deveria existir uma lei que proibisse as
pessoas de abrirem suas bocas quando não tem nada de interessante a dizer. Mas
as pessoas adoram falar e ficam falando qualquer coisa apenas para articularem
suas bocas. É desnecessário comentar que não sou um sujeito muito sociável.
Quando entrei na padaria o Joaquim estava
arrumando os pães na prateleira atrás do balcão. Esta é outra coisa a respeito
de nossa vida padronizada, sempre tem um português em uma padaria. Eu sei é
chato e repetitivo. Como a vida pode ser tão pobre? Ali estava eu saindo da
minha rotina, comprando uma caixa de leite, e nem sabia se deveria comprar
desnatado ou integral. Normalmente as pessoas compram desnatado por causa da
saúde, ou integral por causa do gosto. Raquel era uma mulher de gostos ou de
saúde? Como poderia saber?
- E
ai meu amigo, o de sempre? Joaquim disse.
- Eu
quero uma caixa de leite integral e outra caixa de leite desnatado. Eu disse.
-
Você esta doente Jeux?
Realmente
eu me sentia meio doente, mas não estava doente. Ou estava doente? Lembrei que
logo cedo estava com enxaqueca. Como ele descobriu?
-
Joaquim o vidente, heheh. Eu disse.
-
Apenas achei estranho você comprando leite. Ele respondeu.
- Ah
o leite, claro, - eu disse - mas não é pra mim.
-
Então o caso é pior do que eu pensei. Ele disse e abriu um sorriso amarelado.
-
Vamos lá Joaquim, eu não tenho o dia todo.
Sai
da padaria, com a sacola. Levando o de sempre e mais duas caixas de leite. A
manhã estava realmente com cara de manhã, não tinha nada de especial. As
quadras continuavam iguais ao dia anterior, os carros com as pessoas indo
trabalhar continuavam passando, os pássaros cantavam. Tudo como deveria ser
numa manhã. Até o sol estava radiante e desprezível.
Entrei
no pequeno corredor, onde ficavam os quartos, alinhados como baias para cavalos.
Driblando as roupas dependuradas em uma corda de náilon no meio do corredor, roupas
mal lavada e ainda com fedor de suor e sabão em pó. Passei a primeira porta e
fiquei parado na de numero 2. Três batidas. E Raquel abriu a porta com um
sorriso. Porque as pessoas estão sempre com um sorriso forçado nos lábios.
Parece ser um código de boas maneiras. Todo mundo tem que estar sempre
sorrindo, mesmo que por dentro esteja se desmanchando em lagrimas. Quantas
mascaras são necessárias para a boa convivência. Entreguei a sacola com as
caixas de leite e fui para o meu quarto. Tinha sido cruel com o vizinho do
numero 4 e gentil com a vizinha do numero 2. Eu estava aonde deveria estar, no
meu lugar preferido. Em cima do muro, entre o céu e o inferno.
Tirei
da sacola o pão e o vinho, rasguei um bom naco de pão com as mãos, e desatarraxei
a tampa da garrafa de plástico. Um bocado de pão e um gole de vinho, olhando o carpinteiro
equilibrar a estante de metal. Deus é estranho, ele faz coisas realmente
maravilhosas. E consegue equilibrar o universo, o pegando apenas por uma pata
torta. O dia realmente tinha começado maravilhoso.
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