Passava das três da
madrugada e a porta se abriu, acordei com o barulho da chave na porta e abri os
olhos no momento que ela foi escancarada. Diego estava na porta me olhando,
percebi que era ele pela silueta de seu corpo e a luz do corredor por trás dele,
parecia um lutador de boxe pronto para começar. Ficou ali apenas olhando. Tive
a sensação de que iria morrer, de que ele iria me espancar até a morte. Mas
continuava apenas olhando. Lembrei também que éramos amigos. De certa forma não
tinha como explicar. Ficamos os dois se olhando por um longo tempo. “O sujeito
é um gigante e eu sou um rato” pensei.
Tudo começou depois que
cheguei à casa da Helena naquela tarde em que tinha conseguido algum dinheiro
com meu irmão. E ela por um único motivo me expulsou de seu apartamento por
telefone. Ela estava apaixonada por mim e não podia ver eu feliz com outra
mulher. Principalmente esta outra mulher sendo muito mais jovem. Trinta anos
mais jovem do que ela. Tinha esta facilidade de me envolver em confusões e
conhecer pessoas realmente estranhas. E Helena foi um desses encontros que você
nunca vai acreditar que possa acontecer até acontecer. Estava bêbado num bar
onde acontecia um recital de poesias e outras bajulações. O local fedia a
poetas e escritores, todo mundo tinha um santo graal guardado na bolsa. Eu
também levava o meu numa pasta. Um pequeno manuscrito idiota de poemas idiotas
e pretensiosos que eu havia escrito e realmente achava maravilhosos. Depois
daquela noite eu joguei no lixo.
Mas estava lá bêbado e
confiante, aplaudindo a cada final de leitura. Estava seguindo a onda. Querendo
me enturmar. Querendo também ser aplaudido. Não encontrei ali nenhum poeta ou
escritor que fosse a primeira pessoa. Todos eram advogados, médicos, servidores
públicos, militares, professores universitários, empresários, jornalistas... a
escrita estava sempre na segunda pessoa. Uma forma de massagear seus próprios
interesses pessoais. Estavam masturbando o ego um do outro.
- Oi está gostando? Ela
disse.
- Muito legal! Respondi.
- Quer sentar com a gente?
- Sim, obrigado.
Sai da minha mesa e sentei à
mesa ao lado com duas mulheres que eu nunca tinha visto antes. Eu estava meio
constrangido e tímido, ia apenas respondendo as perguntas como se estivesse num
interrogatório. No final do recital ficamos grandes amigos e Helena me levou
para seu apartamento. Acabei dormindo no sofá da sala. Bêbado e elétrico com as
novidades. Ela foi para seu quarto. E apenas no outro dia eu a vi e tomamos
café juntos na cozinha. Ela parecia um pouco pior do que eu imaginava.
- Você pode me emprestar uma
toalha? Perguntei.
- Claro meu querido. Ela
disse e foi pegar a toalha em seu quarto.
Depois do café tomei um
banho e nós despedimos.
Aquela semana foi muito
louca, todo o dia encontrava-a depois do serviço ou passávamos o dia juntos
quando ela resolvia faltar. Ficávamos sempre no mesmo bar bebendo ou em seu
apartamento até tarde da noite. Ficamos grandes amigos naquela semana, em
algumas noites eu terminava indo dormir no apartamento dela.
Helena gostava de literatura
também, mas a opinião dela acabava sempre contraria a minha. Às vezes quase que
acertávamos. Resolvemos falar de outros assuntos para não brigar, tem coisas
que não da para conversar. Eu gostava de escutar as historias dela, o seu
passado. Sempre fui um bom ouvinte. Ela parecia ser uma mulher muito solitária.
E bebíamos, bebíamos muito. Sempre os últimos a sair do boteco. A ultima luz do
prédio a se apagar.
Ela tinha uma vantagem,
conhecia o meu trabalho. Eu tinha mostrado naquela primeira noite o meu
manuscrito. Mas eu não tinha certeza que ela tivesse lido, tínhamos bebido
muito. Eu não conhecia o estilo dela. E nem tinha interesse em conhecer. Sempre
achei muito chato ter que ler o texto de algum amigo, sempre gostava de ler o
trabalho de pessoas que eu não conhecia e de preferência ler livros sem fazer
comparações com a vida do autor. A semana passou agradável, muita bebida e
nenhum assunto sério, mantivemos certo respeito mutuo e não mostramos nossos
manuscritos.
Eu estava numa fase de não
escrever, o sarau tinha sido apenas uma tentativa frustrada de encontrar alguém
com que pudesse conversar. Uma ilusão. Foi uma perda de tempo neste sentido.
Escritores são animais nômades e solitários.
Começamos a confiar um no
outro, estava nascendo uma amizade pura e ingênua. Pelo menos naqueles
primeiros encontros. Não que eu não tivesse pensado em comer ela. Eu tinha
pensado, mas de uma maneira respeitável. Tinha me masturbado uma ou duas vezes
em seu banheiro e nada mais. Mantive a distancia. Apenas amizade entre um homem
e uma mulher. O sexo também pode fazer parte da amizade, quando os parceiros
sabem o valor de uma amizade e não ficam tentando escravizar a outra parte com
suas partes intimas e sentimentos sem sentido.
Expliquei minha situação
financeira e fui morar com ela, passávamos os dias e as noites bebendo e
conversando. Ela me tratava como a um filho. Ficamos grandes amigos. As semanas
se passaram e eu não conseguia escrever mais nem uma linha. Ela também não ia ao
serviço, parecia que estava de férias. Ficávamos bebendo e sonhando os sonhos
dela. Tudo girava em torno da vida dela, comecei a me sentir como um
cachorrinho de madame; bem alimentado, com um lugar para dormir, brincando com
os brinquedinhos que ela me dava e sempre disponível para lhe retribuir com
atenção e carinho.
Não posso reclamar era até
bem interessante toda aquela situação. Não precisava trabalhar e tinha muito
tempo para escrever e beber. Mas não conseguia escrever e ficava apenas
bebendo. E ela era uma ótima parceira de copo. Bebíamos muito o dia todo.
Tínhamos criado uma rotina.
Um dia ela levou a Julia
para morar junto. As coisas começaram há ficar um pouco estranhas. A garota era
mais jovem do que eu e exageradamente sensual, me apaixonei por ela assim que
ela botou o pé dentro do apartamento e pude ver seu rosto e corpo prefeitos.
Ela também gostava de literatura e ficamos os três bebendo e falando sobre
literatura. Eu estava no paraíso. Podia dormir até o meio dia, beber o dia todo
e tinha a visão daquela musa todas às horas.
Consegui um dinheiro emprestado com o meu
irmão com a promessa de que iria usar para procurar trabalho e convidei Julia
para ir num restaurante árabe para ver um espetáculo de dança do ventre.
E você sabe toda aquela
dança, a garota barriguda, mostrando o umbigo de maneira sexy. E eu ali ficando
excitado e esquecendo a Julia apesar de estar doido por ela. Mas o telefone
tocou e era a Helena querendo saber a onde eu estava e expliquei que estava no
restaurante árabe vendo uma apresentação de dança do ventre com a Julia. E ela
ficou com muito ciúme e falou coisas bem chatas, mas eu sempre a vi apenas como
uma amiga. Eu não tinha pensado. Bom quem sabe uma vez eu tivesse pensado. E a Julia estava com ciúme da dançarina e
tudo começou a ficar confuso. Helena me expulsou de casa e a Julia falou que ia
voltar para a casa da mãe dela.
Tinha gastado todo o
dinheiro no restaurante e não podia voltar para a casa da Helena, me lembrei da
Renata. Ela morava apenas algumas quadras abaixo do restaurante na direção da
Av. Osvaldo Aranha. Fui caminhando até seu apartamento e toquei o interfone.
- Oi Renata é o Jeux, posso
entrar?
- É claro! Já vou abrir um
momento.
Escutei o barulho da porta
destravando e empurrei, o prédio era de quatro andares e Renata morava no
ultimo, sem elevador. Fui subindo as escadas até chegar à sua porta e bater.
Ela estava meio deprimida por que tinha terminado com o namorado. Ficamos
conversando e bebendo uma garrafa de vinho. O apartamento dela tinha três
peças, cozinha, sala e banheiro. Na sala um sofá cama de casal.
- E vocês terminaram mesmo?
Perguntei.
- Sim, ele esta saindo com
outra garota. Ela disse quase chorando, fiquei com pena.
- Mas isto não quer dizer
nada, é só uma aventura.
- Ela esta grávida dele,
você entende?
- E vocês estão se falando?
- Ele tem a chave do
apartamento e de vez em quanto aparece e dormi aqui.
- Eu não sei o que dizer.
Você tem outra garrafa de vinho?
- Não, só tinha está. Ela
disse, e foi arrumar o sofá cama.
Enquanto ela arrumava a
cama, me ofereceu uma toalha e fui tomar um banho. Estava cansado e fiquei um
bom tempo embaixo do chuveiro. Pensando o que iria fazer. Quando sai do
banheiro a sala já estava meio escura, apenas entrava a claridade da janela e
Renata estava deitada. Tirei a toalha e me deitei ao seu lado.
- E o que vai fazer? Eu
disse.
- Acho que vou voltar para o
interior.
- Mas pra fazer o que – eu
disse –, vai embora de Porto Alegre?
- Não posso pagar o aluguel,
sozinha. Ela respondeu.
- É uma pena, boa noite!
- Boa noite!
Pela primeira vez eu estava
deitado com uma garota linda e não me sentia nada confortável. Demorei um bom
tempo até conseguir dormir. Pensando no que ela havia me dito “ele tem a
chave”. Os pés do sofá ficavam para o lado da porta e a sala era muito
minúscula.
Às três horas ele apareceu,
Renata continuava dormindo. Por um longo momento ficamos nos olhando. E ele
fechou a porta, sumindo. Depois daquela noite nunca mais vi nem a Renata e nem
o Diego.
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