Voltei da biblioteca naquela
tarde e fui direto para a casa de um amigo. Ficamos bebendo e discutindo
literatura. Sempre com aquele jeito de autodefesa, cada qual mais esperto do
que o outro. Quanto mais bebíamos a ideia ia ficando mais clara ao nosso
respeito. Tínhamos um ódio que chegava a constranger, cada qual era dono da
razão à sua maneira e tentava convencer o outro sem muita sorte. Depois de umas
duas horas bebendo cheguei a conclusão de que não adiantava, comecei a
concordar com tudo.
- Você, realmente acredita
que estamos criando algo? - Perguntei.
- Sim, meu caro. Eu estou
reinventando a literatura de uma maneira universal.
- Pensei que o que você
escrevia tinha a ver com algum clube.
- Clube?! - Maciel, ficou
admirado.
- Sim, um clube ou tipo de
organização.
- Mas, porque você pensa isso?
- Tenho lido o que você
escreve.
Na verdade eu nunca lia nada
do que ele escrevia, às vezes, um pequeno tópico, passagem. Mas nada de profundidade.
Fazia aquilo como quem tem que tomar um remédio amargo, por que o médico
receitou. Não estava na minha vontade ler o que ele escrevia. Tinha mais a ver
com o que eu escrevia e queria que ele lesse.
- Mas, tem lido mesmo Jeux?
- Claro, meu amigo, e até
tem algo bom em tudo isto.
- O que?
- Não sei explicar. E você
leu os últimos poemas que deixei semana passada?
- Tenho trabalhado muito,
mas vou ler.
- Tudo bem, eu também tenho.
Fui na biblioteca hoje.
- E o que tem de novo?
- Aconteceu um negócio muito estranho,
encontrei umas garotas.
- E quando vamos sair
juntos?
- Ainda não sei, foi apenas
um contato.
- Ficou com o número do
telefone delas?
- Não, mas deixei o meu.
- Nunca mais vai ver estas
garotas. Você acha que elas vão ligar? Você não conhece as mulheres, elas
querem que você ligue. Não elas que tem que ligar.
- Sei, mas elas têm o meu número.
- Duvido que liguem, e que
tipo?
- Uma morena e uma ruiva,
muito sensuais e estranhas.
- Estranhas?
- Não sei explicar,
diferentes. Elas têm uma sensualidade diferente.
- Quer dizer duas lésbicas.
- Eu diria que, apenas
apaixonadas e sensuais. Muito jovens e adoráveis. Fiquei apaixonado pelas
meninas.
- Está sempre apaixonado. Me
fala um dia que você não tenha se apaixonado por uma mulher, você está sempre
se apaixonando e causando confusão.
- Não posso evitar, as
mulheres me fascinam.
- Escolhe uma e seja feliz
com ela.
- Não consigo, é como
escolher apenas uma garrafa de vinho e desprezar toda a adega. Não é justo.
- Cuidado com a ressaca, você
ainda vai perder o fígado vivendo neste estilo...hehehe.
- Voltamos à novela, você já
terminou?
- Não, ainda faltam alguns capítulos,
tá uma merda. Não sei o que faço com a porra do personagem central.
- Agora falta pouco, já fez
o principal é só finalizar.
- Ou jogar tudo fora.
Continuamos aquela conversa
por um bom tempo, meu velho amigo já estava chato e o tempo tinha passado,
quando percebi já era tarde e dei um jeito de cair fora e ir para a rua. E lá
estava eu com meus pensamentos a passo lento percorrendo a cidade. Meio sóbrio
ou meio bêbado, que diferença faz. Quando morava em Porto Alegre num cortiço
próximo ao Jardim Botânico costumava caminhar pelo bairro depois da meia-noite.
Uma noite surgiu um enorme cachorro preto que me acompanhou. Depois virou
rotina, sempre que eu saia e ia até a esquina aparecia o cão e ficávamos
perambulando até quase nascer o dia, lado a lado andávamos sem muito a dizer,
nos entendíamos bem. Bons tempos.
Como é sutil a noite
pelotense com seus casarões antigos, iluminação amarelada e sombria, o
calçamento irregular, ruas estreitas. Grande Babel contemporânea, veja não a
classifico como moderna, pois modernos são os anjos e eles não caem todo o dia.
Mas, se tem algo de bom em Pelotas é este ar contemporâneo e melancólico, se
ficar quieto em uma esquina, numa madrugada em que apenas você está na rua.
Consegue ver os fantasmas lhe espiarem em cada detalhe arquitetônico, é uma
cidade assombrada.
Já passava da meia-noite
quando percebi o quanto tinha andado, eu começo a andar e a pensar que acabo me
perdendo, procurando, sempre procurando. A gênese de todo este sentido vazio,
algumas vezes chegando perto. Hoje vivo esta miragem, mas tudo é miragem. Fico
codificando meus espasmos e confio na não-natureza das coisas. Qualquer que
fosse o sentido primordial fica a ilusão de escolher o que ler, mas
recapitulando minhas experiências em livrarias, é o livro que escolhe. Você já
viu um livro se escondendo na prateleira, eles se escondem quando não querem
que você os leia. Existe o momento certo para conhecer o que eles têm por
dentro, na hora certa eles nos encontram. Pessoas são que nem livros. Por este
motivo as épocas são diferentes, e encontramos pessoas que nos marcam para a
vida inteira. Que dão sentido aquela época. Precisávamos delas naquele momento,
como precisamos delas em nossas lembranças. Por este motivo não gosto de
apressar os encontros, tudo a seu tempo.
Sempre ando no bolso com uma
lista incontável de livros que quero ler, passo anos procurando e eles não
aparecem quando eu quero. É quando eu preciso que eles surgem. Os livros têm
esta magia inexplicável. Devemos estar atento as sutilezas da vida. Pessoas e
livros são sempre únicos.
Tem momentos na vida que
podem surpreender pela simplicidade, nem sempre estamos preparados para o
simples. Estamos sempre querendo coisas grandiosas. Tudo tem que ser
gigantesco. Mas, sejamos realistas, nós somos muito pequenos.
Não inventaram nada mais
forte e por este motivo continuamos caindo no mesmo lugar, continuamos
redescobrindo nossa alma. Lembro também do velho pintor e o quanto sonhávamos
acordados. Ele com seu caderno esboçando futuros quadros e eu escrevendo poemas
querendo conquistar o mundo para encontrar a alma. Eu fiquei de porre e ele
louco perdido em alguma cidade do Rio Grande do Sul, mendigando bitucas de
cigarro em alguma rodoviária. Assim, entrou minha geração para a história, mas
não foi nenhuma mentira.
A realidade em si tinha sido
plagiada, nos negaram a magia das prateleiras, dos livros, das pessoas. Como um
cartaz de um velho filme, arrancado dos destroços de um cinema em ruínas.
Mas, onde quero chegar com
tudo isto? Preciso contar a respeito da Luiza e de como a conheci.
Quando vi Luiza agachada
atrás do carro, mijando da forma mais simples, como se tivesse encontrado a
verdadeira natureza, pude perceber que se tratava de uma pessoa especial. Sua
cara de menina sapeca que está fazendo arte, me olhou com aqueles olhos vivos e
sorriu, enquanto me aproximava. Fui gentil alcançando meu lenço. Ela se secou
com ele e me devolveu úmido.
Logo percebi que seríamos
grandes amigos, ela tinha uma dessas garrafinhas de bolso. Cheia de cachaça
suave. Sentamos na calçada e ficamos bebendo. Contou-me sobre seus amores e a
faculdade. Não estava contente com o curso, achava um porre. E secamos a
garrafa. Enquanto eu discursava sobre poetas franceses e o mal do século. Sou
um poeta e vivo divagando, adoro uma nostalgia. Confessei para ela. Que apenas
sorria, enquanto eu acendia um cigarro para fumarmos.
Lembrei-me de outra amiga,
enquanto conversávamos, que também fazia faculdade de letras em Porto Alegre,
que tinha o mesmo jeitinho sensual e uma mania de sempre ficar me tocando
enquanto conversávamos. Tem mulheres que são inesquecíveis, tocam nossa alma
com tanta sedução e inexplicável delírio. A emoção num estado de eterno finito,
este é o momento que se purifica na redenção de um lenço úmido. Um poeta diria
que nossa procura termina no mais solitário abismo.
Ainda era meia-noite quando
voltei a olhar para o relógio, tinha parado o tempo. Estava apenas assombrado
com a realidade, ou tinha construído minha realidade naquele encontro
inventado.
Continuei descendo a rua com
esta lembrança de seu sorriso, nada pode explicar aquele sorriso tão lascivo.
Que além do mais o resto se traduz em poeira. Mulheres e seus sorrisos, elas
acabam com nossas defesas num piscar de olhos e num singelo ato de murmurar
palavras com os lábios. Sem dizer nada elas dizem tudo.
Antes de deixá-la ali sentadinha
na calçada, confessei. Mesmo que digam que não foi nesta noite que a conheci.
Mas posso sempre atestar que a conheci nesta noite e isto é mágico. Não apenas
mais uma cena. Triste seria a vida sem estes momentos de delírio. Todas as
flores e perfumes para quebrar o concreto. Posso dormir cem anos acordado e
fazer da vida a brincadeira que querem. Pois esta noite eu existi estando ao
seu lado. Foi mais ou menos isto que falei enquanto acendia outro cigarro. Ela
apenas sorriu. Guardo em minha jaqueta o lenço com que ela se secou. Como prova
de nossa amizade.
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