Calotas e pequenos homenzinhos
verdes
Comecei a contar para ele da
maneira que eu me lembrava do sonho, mas ele ficava apenas olhando como se
aquela história não o surpreendesse em nada. Foi mais ou menos assim:
- Eu já estava cansado de ficar
dentro de casa batendo naquela máquina, sem conseguir tirar nada que prestasse.
As coisas estavam bem ruins. Blake ficava sentado no chão apenas me olhando com
aqueles olhos de pidão. Realmente não sabia o que fazer. Algumas vezes me
levantei para ir ao banheiro, outras para ir à cozinha tomar um copo d’água.
- Entendo, mas o que o levou a
achar que era verdade? Ele perguntou.
- Na verdade foi o Nietzsche, você
sabe como ele é impulsivo.
- Impulsivo? Ele disse.
- Pode não ser a palavra certa,
mas ele ia me seguindo diferente do Blake, o Blake apenas ficava sentado do lado
da mesa. Mas o Nietzsche não, aonde eu ia ele ia atrás.
Enquanto ele ia escutando a história
ia também tomando nota de tudo em seu pequeno bloco de papel. Um bloco bem
legal com capa de couro marrom, combinava com o estilo de decoração da sala. A sala
tinha moveis pesados de madeira e estofados de couro, não era rustico, era clássico.
Mesmo na tarde mais ensolarada as cortinas não deixavam o sol entrar, ficávamos
ali apenas com as luzes dos abajures e das pequenas luminárias na parede. Tinha
uma nevoa no lugar, sabe aquela nevoa tênue que fica quando se fuma muito em
uma peça fechada com pouca iluminação.
- Voltemos ao comportamento do
Nietzsche e do Blake. Porque apenas eles ficavam na casa? Ele disse.
- Talvez por serem mais calmos, e
sombrios. Sabe como é, preciso de certo clima para escrever. E eles sempre
ficavam na deles, sem interferir.
- Mas um não ficava lhe seguindo
o tempo todo?
- Sim, mas não chegava a
atrapalhar. Mas não é a respeito deles que eu quero falar.
- E, é a respeito de quem ou do
que, você deseja falar?
- Quando eu vi que não ia
conseguir mais nada, resolvi dar uma volta no pátio para esfriar a cabeça.
- Caminhar é bom para organizar
os pensamentos, - Ele disse – o Fernando
Pessoa gostava de compor os seus versos caminhando, ele dizia que assim
conseguia ter o ritmo que desejava.
As imagens voltavam a minha mente
como um filme lúdico, um filme de arte. Algo afrancesado. Não parecia uma película
limpa do tipo propaganda que passa em algum canal de televisão. Era mais um
cinema mudo, como mesmo se diz? Não é preto & branco, é, um tom de sépia.
- Sim, sim. Estava caminhando
pelo pátio e encontrei uma calota de Kombi.
- Não sabia que tinha uma Kombi. Você
nunca mencionou.
- E não tenho. Acho que foram as
crianças da minha rua, que jogaram no meu pátio.
- E o que tem essa calota de
importante?
- Já vou chegar lá.
- Ok.
- Tinha encontrado no pátio essa
calota de Kombi e resolvi jogar um pouco de frisbee com o Kafka e o Poe,
Lovecraft apenas ficava assistindo e balançando seu rabo, sabe ele já está
muito velho.
- E aonde estavam o Nietzsche e o
Blake?
- Deixei eles trancados dentro de
casa. É que se eu solto eles viram um pandemônio. Imagina os cinco correndo atrás
de uma calota. Ia ter confusão na certa.
Nossa hora já estava quase no
fim, na parede ao lado da lareira tinha um relógio cuco, fazendo seu
tique-taque prestes a fazer o temível cu-co. Posso afirmar que aquele relógio fazia
o som, como se diz no cinema o “foley” idêntico ao som que se encontra nas
entranhas da floresta negra. Não precisava de mais nada para uma cena macabra. Aquela
era uma sala de horrores.
- Se quiser podemos deixar para a
próxima semana? Ele disse.
- Gostaria de prosseguir.
- Podemos estender um pouco mais
hoje. Não é usual, mas vou abrir uma exceção.
- Obrigado, como eu ia dizendo, estávamos
jogando. E o jogo estava bem divertido. Kafka me trouxe a calota em sua boca, e
ele tem aquele problema de estar sempre babando demais. Peguei a calota e
passei na camisa. Foi quando eu vi.
- O que foi que você enxergou?
- Uma outra calota, pelo menos no
início eu achei que era uma outra calota.
- Interessante alguém mais estava
jogando. Ele disse.
- Não, eu apenas pensei que
fosse. Mas ela veio direto para mim e ficou pairando sobre a minha calota.
- Pairando! Tem certeza que é
essa a palavra?
- Sim, a calota ficava pairando. Ia
contra todas as leis da natureza e da gravidade.
- Isso é muito grave mesmo. Pode
ter sido uma ilusão.
- Tenho certeza que não foi uma
ilusão.
Quando eu terminei de dizer que
não era uma ilusão seu semblante mudou, passou de sereno para preocupado, dava
para ver as linhas de expressão.
- Você sabe que isso não é possível.
Ele disse, e pegou um charuto da caixa em cima da mesa.
- Se alguém me contasse, também
não acreditaria. Mas estava pairando e o mais incrível é que abriu uma minúscula
portinha e desceu uma escadinha até a calota. Um pequeno homenzinho verde saiu
daquela calota mágica e foi descendo até a minha.
- Você deveria estar delirando,
onde já se viu, um pequeno homenzinho verde! Ele disse e acendeu o charuto
dando uma longa baforada.
- Ele era verde, tenho certeza. E
ficou batendo com o pé na calota, como se estivesse chamando alguém.
- Precisamos rever os seus
medicamentos. Ele disse.
- Tenho certeza do que eu vi, e
depois dele insistir mais um pouco desistiu e voltou para sua calota. A escadinha
foi recolhida e a portinha fechada. Antes mesmo do velho Lovecraft se
aproximar. A calota partiu com a mesma rapidez que tinha chegado.
- Isso que está descrevendo não é
uma calota, mas uma mine-nave espacial. O homenzinho seria um alienígena verde.
E sabemos que não existem alienígenas verdes e nem homenzinhos verdes.
Continuamos a conversa por mais
meia hora, sem conseguirmos chegar num consenso. O doutor não acreditava em homenzinhos
verdes, e eu sabia o que tinha visto. No final só restou nos despedirmos.
– Até logo. Eu disse, segurando sua mão com
meu dedo mindinho e balançando.
Ali estava um homenzinho
vermelho, totalmente descrente da possibilidade de existirem homenzinhos
verdes.
Fim.
Röhrig
C.
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