Antes
do temporal
A segunda noite no hospital
foi estranha, sai do quarto e desci pelo elevador até o térreo já passava das
20h. Sai do prédio e fui caminhando pela rua até o café. A garota veio me atender
e eu pedi uma xícara de café expresso.
- O senhor quer com leite? A
atendente disse.
- Apenas café. Respondi.
Fiquei ali sentado na mesa
olhando a cafeteria vazia, apenas eu, a atendente e a moça da faxina. Cinco
minutos foi o tempo que ela levou para trazer a xícara e colocar na mesa.
- O senhor deseja mais
alguma coisa?
Fiquei olhando para ela,
para sua juventude, para tudo que de alguma forma significava aquela pergunta.
Eu realmente queria muitas coisas, como ela podia saber.
- O senhor deseja mais
alguma coisa? Ela insistia.
- Não, obrigado. Apenas o
café.
- Se precisar de mais alguma
coisa é só falar.
- Obrigado.
Ela foi gentil e se retirou.
O café estava bem quente, a fumaça subia da xícara e se perdia no ambiente. A
moça da faxina continuava limpando o chão. A vida continuava apenas vazia e
cheia de nenhum sentido. Provei o café, não era um bom café, já deveria estar
passado há muito tempo. É difícil encontrar um lugar onde se possa tomar um bom
café. Poucas vezes na vida eu tomei um bom café. Não deveria esperar outra
coisa àquela hora da noite. Fiquei bebendo bem devagar degustando cada gole,
daquele café velho. A moça voltou até a minha mesa.
- A que horas fecha?
Perguntei.
- Já estamos fechando, mas
pode ficar a vontade.
- Obrigado.
Eu estava a vontade, não sei
explicar como, mas estava a vontade. O café estava quente, o lugar estava
quente e na rua estava frio. Foi uma longa xícara, deu tempo da moça da faxina
limpar a metade do salão. Terminei o café e fui até o caixa.
- Estava bom? Ela perguntou.
- Perfeito.
Paguei e sai, na rua o frio
continuava aumentando, fechei a jaqueta e apurei o passo para chegar à entrada
do hospital e voltar para o quarto.
O acesso principal estava
fechado, tive que caminhar por um corredor estreito e pegar o elevador dos
fundos. Apertei o botão e fiquei esperando o elevador. Uma enfermeira chegou e
ficou do meu lado esperando o elevador.
O elevador desceu, a porta
se abriu. Dentro tinha dois enfermeiros e uma cama de hospital com rodinhas. Na
cama um corpo enrolado em um lençol, um corpo grande e enrolado em um lençol.
Parecendo uma múmia destas que a gente vê em livros de arqueologia. Eu e a
enfermeira saímos do caminho e os enfermeiros empurraram a cama para fora do
elevador e seguiram pelo mesmo corredor que tínhamos entrado.
Fui gentil e a deixei entrar
primeiro no elevador, depois eu entrei e apertei o botão do numero do andar
onde ficava o quarto.
- Isto é difícil. Ela disse.
- Faz parte do jogo. Eu
disse.
Ficamos em silêncio o resto
da viagem, o elevador subiu devagar. Fiquei pensando no corpo enrolado no
lençol, um corpo grande. Deveria ser o corpo de um homem. Alguém estava morto
embaixo daquele lençol, e os enfermeiros o estavam levando para o necrotério do
hospital. O que mais me chamou a atenção foi a maneira profissional e perfeita
como o enrolaram com o lençol, mostrava muita pratica. Deveria ser algo muito
comum e rotineiro, porque a enfermeira ainda demonstrava algum sentimento. Eu
não consegui entender. Era apenas um sujeito que estava ali embaixo. Alguém que
tinha chegado ao fim da linha. É provável que alguns parentes e amigos
estivessem chorando naquele momento. É provável que ele tenha feito muitas
coisas, é provável que tenha deixado outras coisas por fazer. Mas é tudo
provável e rotineiro, faz parte do jogo.
Entrei no quarto e dei uma
olhada onde ficavam as duas camas, elas continuavam no mesmo lugar. Minha amiga
continuava na dela e a outra continuava vazia. Sentei do lado da cama dei uma
olhada no soro, continuava pingando no mesmo ritmo de quando eu tinha saído.
Adormeci.
No outro dia acordei cedo,
dei uma olhada no soro, continuava pela metade, desci para outro café. E foi
como eu havia imaginado, o café continuava ruim, mesmo a cafeteria tendo
acabado de abri o café continuava com o gosto de café velho. Voltei para o
hospital, e antes de chegar na porta da entrada, vi o portão da garagem sendo
aberto. Olhei para o lado e um carro de uma funerária estava dando sinal que ia
entrar na garagem. Toda a garagem tinha azulejos brancos no piso e nas paredes.
Eles tinham vindo buscar o sujeito do elevador. Fiquei pensando no trabalho que
ele ia dar, tendo aquele corpo grande. Iam ter que conseguir um caixão grande,
e depois um grupo de amigos ou parentes fortes para carregar o caixão até o
destino final. São muitos protocolos até a carne poder simplesmente apodrecer
na escuridão e no silêncio. Sete dias depois continuariam os protocolos e as
lágrimas. Eu não iria ficar sete dias, minha amiga estava esperando sua alta
para aquela manhã. Deixei o carro entrar e o portão fechou lentamente. Um
bonito carro preto com adornos amarelos na lateral. Voltei para o quarto e
esperamos o medico chegar para dar à alta. Acabamos ficando até o final do dia.
Dois dias depois a rotina
fora do hospital, me fez esquecer em parte, mas não totalmente aquela imagem do
elevador. Quando sai do apartamento a tarde para ir ao centro, sai de maneira
distraída. Uma mulher ia a frente e resolvi dar uma olhada discreta em sua
bunda, não era uma bunda muito atraente, estava um pouco caída. Quando olhei
para o lado, tinha um cão do meu lado, um cão enorme e cor de caramelo, com os
olhos vermelhos. Levei um susto, nunca tinha visto um cão com olhos tão
vermelhos, e tão grandes, ele andava tão próximo que quase batia em minha
perna. E quando eu olhava pra ele, ele me olhava. Foi estranho, tive um pouco
de receio que ele me mordesse. Seguimos por uma quadra andando lado a lado, eu
parava e ele parava, eu olhava pra ele e ele me olhava. Parecia andar
sincronizado com os meus passos. O céu estava limpo, e de tempos em tempos,
alguém estourava um foguete, por causa do jogo de futebol que estava
acontecendo. Num destes estouros, olhei para o céu azul e vi o risco da fumaça
de dois foguetes. Olhei de novo para o lado onde estava o cão e ele tinha
sumido. Fiquei com uma sensação como se não soubesse se ele era real ou apenas
fruto da minha imaginação. Resolvi continuar caminhado, olhando para todos os
lados na esperança de enxergá-lo. Mas ele tinha simplesmente sumido. O resto do
dia foi tranqüilo.
À noite minha amiga apareceu
em meu apartamento, já fazia alguns dias que ela tinha saído do hospital e
parecia estar bem, jantamos, depois fizemos sexo e dormimos juntos. No outro
dia acordei com ela do meu lado, ficamos aninhados de conchinha, fiquei
sentindo o calor do seu corpo. Ela se virou para o meu lado, e senti seu
hálito. Foi um cheiro conhecido que saiu de sua boca, um cheiro que já fazia
vinte anos que eu não sentia. Um odor estranho, que me fez voltar no tempo. Ela
tinha o hálito da morte, eu conhecia aquele cheiro. É um cheiro muito peculiar.
Eu não sei qual o produto que se usa para embalsamar um corpo, mas foi aquele
cheiro que eu senti. Fiquei um tempo sentido seu hálito e me lembrando. É um
odor leve como de peixe fresco. Veio a minha mente lembranças tristes. Eu nunca
vou conseguir esquecer aquele cheiro. Ela despertou e voltamos a nós aninhar de
conchinha. O calor de seu corpo e a meia luz do quarto, o frio que estava fora
das cobertas, despertou uma preguiça. Mas seu jeito manhoso, me fez levantar da
cama e preparar o café. Um bom café, novo e passado na hora. Ficamos na cama
tomando o café, e depois fizemos mais um pouco de sexo.
São estranhos os sinais que
a natureza nós da antes de começar uma tempestade, primeiro você sente que algo
esta diferente, depois é o vento, as folhas, a poeira, as nuvens que vão
escurecendo e quando você vê a chuva vem de forma implacável, como se fosse
acabar o mundo. E depois passa e você percebe que o mundo continua no mesmo
lugar e que você ainda está vivo. Apesar de a morte estar sempre a nossa volta,
sutil, às vezes gentil, companheira. Eu sei, normalmente esquecemos os sinais,
ou escolhemos apenas não enxergar. Mas a tempestade é apenas um fenômeno da natureza.
E fazemos parte do jogo.
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