“O que é escrever?”, “Por que escrever?”, “Para quem se
escreve?” são os questionamentos feitos por Jean-Paul Sartre. Pressupondo que
“a palavra é ação”, o autor procura realizar uma análise histórica/filosófica
sobre a relação do escritor com a sociedade, e de como a literatura reflete
esse elo…
O texto abaixo foi originalmente publicado em: SARTRE, J-P.
Qu’est-ce que la littérature?. Paris: Galimard, 1948. A versão do texto em
língua portuguesa foi traduzido por Carlos Felipe Moisés, sendo publicado e
reimpresso pela Editora Ática no ano de 2004.
O que é escrever? | Por Jean-Paul Sartre
Nós não queremos “engajar também” a pintura, a escultura e a
música, pelo menos não da mesma maneira. E por que haveríamos de querer? Quando
um escritor dos séculos passados expressava uma opinião sobre seu ofício, por
acaso se exigia dele que a aplicasse às outras artes? Mas hoje é elegante
“falar de pintura”, no jargão do músico ou do literato, ou “falar de
literatura”, no jargão do pintor, como se no fundo só existisse uma única arte,
exprimindo-se indiferentemente em qualquer dessas linguagens, à maneira da
substância spinozista, que cada um de seus atributos reflete com adequação.
Pode-se encontrar, sem dúvida, na origem de toda vocação artística, uma certa
escolha indiferenciada que as circunstâncias, a educação e o contato com o
mundo só mais tarde irão particularizar. Também não há dúvida de que as artes
de uma mesma época se influenciam mutuamente e são condicionadas pelos mesmos
fatores sociais. Mas aqueles que querem provar o absurdo de uma teoria
literária mostrando que ela é inaplicável à música devem antes provar que as
artes são paralelas. Ora, esse paralelismo não existe. Aqui, como em tudo o
mais, não é apenas a forma que diferencia, mas também a matéria; uma coisa é
trabalhar com sons e cores, outra é expressar-se com palavras. As notas, as
cores, as formas não são signos, não remetem a nada que lhes seja exterior. Sem
dúvida, é impossível reduzi-las estritamente a si mesmas, e a idéia de som
puro, por exemplo, é uma abstração; como demonstrou muito bem Merleau-Ponty
naPhénoménologie de la perception [Fenomenologia da percepção] , não existe
qualidade ou sensação tão despojadas que não estejam impregnadas de
significação. Mas o pequeno sentido obscuro que as habita, leve alegria,
tímida tristeza, lhes é imanente ou tremula ao seu redor como um halo de calor;
esse sentido obscuro é cor ou som. Quem poderia distinguir o verde-maçã de sua
ácida alegria? E já não será excessivo dizer “a alegria ácida do verde-maçã”?
Há o verde, há o vermelho, e basta; são coisas, existem por si mesmas. É
verdade que se pode conferir-lhes, por convenção, o valor de signos. Fala-se,
por exemplo, em linguagem das flores. Mas depois de estabelecido um acordo, se
as rosas brancas para mim significam “fidelidade”, é que deixei de vê-las como
rosas: meu olhar as atravessa para mirar, além delas, essa virtude abstrata; eu
as esqueço, não dou atenção ao seu desabrochar aveludado, ao seu doce perfume
estagnado; não chego sequer a percebê-las. Isso significa que não me comportei
como artista. Para o artista, a cor, o aroma, o tinido da colher no pires são
coisas em grau máximo; ele se detém na qualidade do som ou da forma, retoma a
elas mil vezes, maravilhado; é essa cor-objeto que irá transportar para a tela,
e a única modificação por que a fará passar é transformá-la em objeto
imaginário. Ele está, portanto, muito longe de considerar as cores e os sons
como uma linguagem [1]. O que vale para os elementos da criação artística vale
também para as suas combinações: o pintor não deseja traçar signos sobre a
tela, quer criar [2] alguma coisa; e se aproxima o vermelho do amarelo e do
verde, não há razão alguma para que o conjunto possua um significado definível,
isto é, para que remeta especificamente a algum outro objeto. Sem dúvida esse
conjunto também é habitado por uma alma, e já que o pintor teve motivos, mesmo
que ocultos, para escolher o amarelo e não o violeta, pode-se sustentar que os
objetos assim criados refletem as suas tendências mais profundas. Só que jamais
exprimiriam sua cólera, sua angústia ou sua alegria do mesmo modo que o fariam
as palavras ou a expressão de um rosto; estão impregnados disso tudo; e por
terem penetrado nessas cores, que por si mesmas já possuíam algo como um
sentido, as suas emoções se embaralham e se obscurecem; ali ninguém será capaz
de identificá-las com clareza. Aquele rasgo amarelo no céu. sobre o Gólgota,
Tintoretto não o escolheu para significar angústia, nem para provocá-la;· ele é
angústia, e céu amarelo ao mesmo tempo. Não céu de angústia, nem céu
angustiado; é uma angústia feita coisa, uma angústia que se transformou num
rasgo amarelo do céu, e assim foi submersa, recoberta pelas qualidades próprias
das coisas, pela sua impermeabilidade, pela sua extensão, pela sua permanência
cega, pela sua exterioridade e por essa infinidade de relações que elas mantêm
com as outras coisas; vale dizer, a angústia deixou de ser legível, é como um
esforço imenso e vão, sempre interrompido a meio caminho entre o céu e a terra,
para exprimir aquilo que sua natureza lhes proíbe exprimir. Do mesmo modo, o
significado de uma melodia – se é que neste caso ainda se pode falar de
significado – não é nada mais que a própria melodia, ao contrário das idéias,
que podem ser traduzi das adequadamente de diversas maneiras. Diga que a
melodia é alegre ou sombria; ela estará sempre além ou aquém de tudo quase
possa dizer a seu respeito. Não porque o artista tenha paixões mais ricas ou
mais variadas, mas porque suas paixões, que talvez estejam na origem do tema
inventado, ao se incorporarem às notas, sofreram uma transubstanciação e uma
degradação. Um grito de dor é sinal da dor que o provoca.
Mas um canto de dor é ao mesmo tempo a própria dor e uma
outra coisa que não a dor. Ou, se se quiser adotar o vocabulário
existencialista, é uma dor que não existe mais, é uma dor que é. Mas, dirá
você, e se o pintor fizer casas? Pois bem, precisamente, ele as faz, isto é,
cria uma casa imaginária sobre a tela, e não um signo de casa. E a casa assim
manifesta conserva toda a ambigüidade das casas reais. O escritor pode dirigir
o leitor e, se descreve um casebre, mostrar nele o símbolo das injustiças
sociais, provocar nossa indignação. Já o pintor é mudo: ele nos apresentaum
casebre, só isso; você pode ver nele o que quiser. Essa choupana nunca será o
símbolo da miséria; para isso seria preciso que ela fosse signo, mas ela é
coisa. O mau pintor procura o tipo, pinta o Árabe, a Criança, a Mulher; o bom
pintor sabe que o Árabe e o Proletário não existem, nem na realidade, nem na
sua tela; ele propõe um operário deter minado operário. E o que pensar de
umoperário? Uma infinidade de coisas contraditórias. Todos os pensamentos,
todos os sentimentos estão ali, aglutinados sobre a tela, em indiferenciação
profunda; cabe a você escolher. Artistas bem intencionados já tentaram comover;
pintaram longas filas de operários aguardando na neve uma oferta de trabalho,
os rostos esquálidos dos desempregados, os campos de batalha. Não comoveram
mais que Greuze com seu Filho pródigo. E O massacre de Guernica, essa
obra-prima, alguém acredita que ela tenha conquista do um só coração à causa
espanhola? Contudo, alguma coisa foi dita que não se poderá jamais ouvir e que
exigiria uma infinidade de palavras para expressar. Os esguios Arlequins de
Picasso, ambíguos e eternos, possuídos por um sentido indecifrável, inseparável
da sua magreza arqueada e dos losangos desbotados de seus trajes, são uma
emoção que se fez carne e que a carne absorveu como o mata-borrão absorve a
tinta, uma emoção irreconhecível, perdida, estranha para si mesma, esquartejada
e espalhada pelos quatro cantos do espaço e, no entanto, presente. Não duvido
de que a caridade ou a cólera possam produzir outros objetos, mas neles elas
ficarão atoladas da mesma forma; perderão o seu significado, restarão apenas
coisas habitadas por uma alma obscura. Não se pintam significados, não se
transformam significados em música; sendo assim, quem ousaria exigir do pintor
ou do músico que se engajem?
O escritor, ao contrário, lida com os significados. Mas cabe
distinguir: o império dos signos é a prosa; a poesia está lado a lado com a
pintura, a escultura, a música. Acusam-me de detestar a poesia: a prova, dizem,
é que Les Temps Moder nes raramente publica poemas. Ao contrário, isso prova
que nós a amamos. Para se convencer disso, basta ver a produção contemporânea.
”Pelo menos a ela”, dizem os críticos em triunfo, “você não pode nem sonhar em
engajar”. De fato. Mas por que haveria eu de querer fazê-lo? Porque ela se
serve de Palavras, como a prosa? Mas ela não o faz da mesma maneira; na
verdade, a poesia não se serve de palavras; eu diria antes que ela as serve. Os
poetas são homens que se recusam a utilizar a linguagem. Ora, como é na
linguagem e pela linguagem, concebida como uma espécie de instrumento, que se
opera a busca da verdade, não se deve imaginar que os poetas pretendem
discernir o verdadeiro, ou dá-lo a conhecer. Eles tampouco aspiram a nomear o
mundo, e por isso não nomeiam nada, pois a nomeação implica um perpétuo
sacrifício do no me ao objeto nomeado, ou, para falar como Hegel, o nome se
revela inessencial diante da coisa esta,
sim, essencial. Os poetas não falam, nem se calam: trata-se de outra coisa.
Diz-se que eles pretendiam destruir o verbo por meio de acasalamentos
monstruosos, mas isso é falso; seria preciso que já estivessem lançados no meio
da linguagem utilitária e procurassem retirar daí as palavras em pequenos
grupos singulares. como, por exemplo, “cavalo” e “manteiga”, escrevendo “cavalo
de manteiga” [3]. Além de tal empreendimento demandar um tempo infinito, não
seria concebível manter-se no plano do projeto utilitário, considerando as
palavras como instrumentos e, ao mesmo tempo, querer retirar delas sua
utensilidade. Na verdade, o poeta se afastou por completo da
linguagem-instrumento; escolheu de uma vez por todas a atitude poética que
considera as palavras como coisas e não como signos. Pois a ambigüidade do
signo implica que se possa, a seu bel prazer, atravessá-lo como a uma vidraça,
e visar através dele a coisa significada, ou voltar o olhar para a realidade do
signo e considerá-lo como objeto. O homem que fala está além das palavras,
perto do objeto; o poeta está aquém. Para o primeiro, as palavras são
domésticas; para o segundo, permanecem no estado selvagem. Para aquele, são
convenções úteis, instrumentos que vão se desgastando pouco a pouco e são
jogados fora quando não servem mais; para o segundo, são coisas naturais que
crescem naturalmente sobre a terra, como a relva e as árvores.
Mas se o poeta se detém nas palavras, como o pintor nas
cores ou o músico nos sons, isso não quer dizer que aos seus olhos elas tenham
perdido todo o significado; de fato, somente o significado pode conferir às
palavras a sua unidade verbal ;sem ele, os vocábulos se dispersariam em sons ou
em traços de pena. Só que também ele se torna natural; deixa de ser a meta
sempre fora de alcance e sempre visada pela transcendência humana; é uma
propriedade de cada termo, análoga à expressão de um rosto, ao pequeno sentido,
triste ou alegre, dos sons e das cores. Fundido à palavra, absorvi do pela sua
sonoridade ou pelo seu aspecto visual, adensado, degradado, o significado
também é coisa, incriada, eterna; para o poeta, a linguagem é uma estrutura do mundo
exterior. O falante está em situação na linguagem, investido pelas palavras;
são os prolongamentos de seus sentidos, suas pinças, suas antenas, seus óculos;
ele as manipula a partir de dentro, sente-as como sente seu corpo, está rodeado
por um corpo verbal do qual mal tem consciência e que estende sua ação sobre o
mundo. O poeta está fora da linguagem, vê as palavras do avesso, como se não
pertencesse à condição humana, e, ao dirigir-se aos homens, logo encontrasse a
palavra como uma barreira. Em vez de conhecer as coisas antes por seus nomes,
parece que tem com elas um primeiro contato silencioso e, em seguida,
voltando-se para essa outra espécie de coisas que são, para ele, as palavras,
tocando-as, tateando-as, palpando-as, nelas descobre uma pequena luminosidade
própria e afinidades particulares com a terra, o céu; a água e todas as coisas
criadas. Não sabendo servir-se da palavra como signo de um aspecto do imundo,
vê nela a imagem de um esses aspectos. E a imagem verbal que ele escolhe por
sua semelhança com o salgueiro ou o freixo não é necessariamente a palavra que
nós utilizamos para designar esses objetos. Como ele já está fora, as palavras
não lhe servem de indicadores , que o lancem para fora de si mesmo, para o meio
das coisas; em vez disso, considera-as como uma armadilha para capturar uma
realidade fugaz; em suma, a linguagem inteira é, para ele, o Espelho do mundo.
Em consequência, importantes mudanças se operam na economia interna da palavra.
Sua sonoridade, sua extensão, suas desinências masculinas ou femininas, seu
aspecto visual, tudo isso junto compõe para ele um rosto carnal, que antes
representa do que expressa o significado. Inversamente, como o significado
érealizado, o aspecto físico da palavra se reflete nele, e o significado funciona,
por sua vez, como imagem do corpo verbal. E também como seu signo, pois perdeu
a preeminência, e já que as palavras são incriadas, com as coisas, o poeta não
decide se aquelas existem em função destas, ou estas em função daquelas.
Estabelece se assim, entre a palavra e a coisa significada, uma dupla relação
recíproca de semelhança mágica e de significado. E como o poeta não utiliza a
palavra, não escolhe entre acepções diversas, e cada uma delas, em vez de
apresentar-se como função autônoma, se dá a ele como qualidade material que se
funde, sob os’ seus olhos, com as demais acepções. Assim realiza ele em cada
palavra, tão-somente graças à atitude poética, as metáforas com que sonhava
Picasso quando desejava fazer uma caixa de fósforos que fosse inteiramente
morcego sem deixar de ser caixa de fósforos. Florença é cidade e flor e mulher,
é cidade-flor e cidade-mulher e donzela-flor ao mesmo tempo. E o estranho
objeto que assim aparece possui a liquidez do fluir do rio, o doce e fulvo
ardor do ouro e, por fim, se abandona com decência e prolonga indefinidamente,
pelo enfraquecimento contínuo do a final átono, seu desabrochar pleno de
recato. A isso se agrega o esforço insidioso da biografia. Para mim, Florence é
também uma certa mulher, uma atriz americana que atuava nos filmes mudos da
minha infância e de quem esqueci tudo, salvo que era esguia como uma longa luva
de baile e sempre um pouco entediada e sempre casta, sempre casada e
incompreendida, e que eu a amava, e que se chamava Florence. Pois a palavra,
que arranca o prosador de si mesmo e o lança no meio do mundo, devolve ao
poeta, como um espelho, a sua própria imagem. É o que justifica o duplo
empreendimento de Leiris, que, de um lado, em seuGlossaire, procura dar a
certas palavras uma definição poética, isto é, que seja por si mesma uma
síntese de implicações recíprocas entre o corpo sonoro e a alma verbal, e, de
outro lado, numa obra ainda inédita, se lança em busca do tempo perdido,
tomando como ponto de referência algumas palavras particular mente carregadas,
para ele, ele afetividade. Assim, a palavra poética é um microcosmo. A crise da
linguagem que eclodiu no início deste século é uma crise poética. Quaisquer que
tenham sido os seus fatores sociais e históricos, ela se manifestou por acessos
ele despersonalização elo escritor em face elas palavras. Este não sabia mais
como se servir delas e,segundo a célebre fórmula de Bergson, só as reconhecia
pela metade; abordava as com um sentimento ele estranheza extremamente
frutífero· elas não mais eram dele, não mais eram ele; mas nesses espelhos
estranhos se refletiam o céu, a terra e a sua própria vida; finalmente, elas se
tornavam as próprias coisas, ou melhor, o negro coração elas coisas. E quando o
poeta junta vários desses microcosmos, dá-se com ele o mesmo que se dá com os
pintores quando juntam cores sobre a tela; dir-se-ia que ele compõe uma frase,
mas é só aparência; ele cria um objeto. As palavras coisas se agrupam por
associações mágicas ele conveniência ou desconveniência, como as cores e os
sons· elas se atraem se repelem, se queimam e sua associação compõe a
verdadeira unidade poética que é a frase-objeto. Com mais freqüência ainda, o
poeta já tem no espírito o esquema da frase, e as palavras vêm em seguida. Mas
esse esquema não tem nada em comum com aquilo que de ordinário se chama esquema
verbal: não preside à construção ele um significado; aproxima-se antes elo
projeto criador através do qual Picasso prefigura no espaço, antes mesmo ele
tocar o pincel, essacoisa que se tornará um saltimbanco ou um Arlequim.
Fugir, longe fugir, eu sinto as aves ébrias/ Mas ouve, ó
coração, o canto dos marujos.
Esse “mas”, que se ergue qual monolito no limiar da frase,
não liga o verso anterior ao verso seguinte. Colore-o de certa nuança
reservada, ele um “ensimesmar-se” que o penetra por inteiro. Do mesmo modo,
certos poemas começam por “e”. Essa conjunção não é mais, para o espírito, a
marca ele uma operação a efetuar: ela se estende por todo o parágrafo, para
conferir-lhe a qualidade absoluta ele uma continuação. Para o poeta, a frase
tem uma tonalidade, um gosto; ele degusta, através dela, e por si mesmos, os
sabores irritantes da objeção, ela reserva, ela disjunção; ele os leva ao
absoluto e faz desses sabores propriedades reais da frase; esta se torna por
inteiro uma objeção, sem ser objeção a nada em particular. Voltamos a deparar
aqui com as relações de implicação recíproca já assinaladas há pouco entre a
palavra poética e o seu sentido: o conjunto das palavras escolhidas funciona
como imagem. ela nuança interrogativa ou restritiva e, inversamente, a
interrogação é imagem do conjunto verbal que ela delimita.
Como nestes versos admiráveis:
Ó estações! Ó castelos!/ Que alma é sem defeito?
Ninguém é interrogado, ninguém interroga: o poeta está
ausente. E a interrogação não comporta resposta ou, antes, ela é a sua própria
resposta. Será, portanto, uma falsa interrogação? Mas seria absurdo crer que
Rimbaud “quis dizer” que todo mundo tem seus defeitos. Como dizia Breton acerca
ele Saint-Pol Roux: “Se ele quisesse dizer, teria dito”. Tampouco quis dizer
outra coisa. Fez uma interrogação absoluta; conferiu à bela palavra “alma” uma
existência interrogativa. Eis a interrogação tornada coisa, tal como a angústia
ele Tintoretto se tornou céu amarelo. Não é mais um significado, é uma
substância; é vista de fora, e Rimbaud nos convida a vê-la ele fora com ele;
sua estranheza vem elo fato de que nos colocamos, para considerá-la, do outro
lado ela condição humana; elo lado ele Deus.
Se assim é, compreende-se facilmente a tolice que seria
exigir um engajamento poético. Sem dúvida a emoção, a própria paixão – e por
que não a cólera, a indignação social, o ódio político – estão na origem do
poema. Mas não se exprimem nele, como num panfleto ou numa confissão. À medida que
o prosador expõe sentimentos, ele os esclarece; o poeta, ao contrário, quando
vaza suas paixões em seu poema, deixa de reconhecê-las; as palavras se apoderam
delas, ficam impregnadas por elas e as metamorfose iam; não as significam,
mesmo aos seus olhos. A emoção se tornou coisa, passou a ter a opacidade das
coisas; é turvada pelas propriedades ambíguas dos vocábulos em que foi
confinada. E, sobretudo, há sempre muito mais em cada frase, em cada verso,
como no céu amarelo acima do Gólgota há mais que uma simples angústia. A
palavra, a frase”coisa, inesgotáveis como coisas, extravasam por toda parte o
sentimento que as suscitou. Como esperar que o poeta provoque a indignação ou o
entusiasmo político do leitor quando, precisamente, ele o retira da condição
humana e o convida a considerar, com os olhos de Deus, o avesso da linguagem?
“Você está esquecendo”, alguém dirá, “os poetas da
Resistência. Você está esquecendo Pierre Emmanuel”.
Mas não; eu ia justamente citá-los para endossar o meu
argument0 [4].
Mas o fato de ao poeta ser vedado engajar-se será razão
suficiente para dispensar o prosador de fazê-lo? Que há de comum entre eles? O
prosador escreve, é verdade, e o poeta também. Mas entre esses dois atos de
escrever não há nada em comum senão o movimento da mão que traça as letras.
Quanto ao mais, seus universos permanecem incomunicáveis, e o que vale para um
não vale para o outro. A prosa é utilitária
por essência; eu definiria de bom grado o prosador como um
homem que se serve das palavras. Monsieur Jourdain fazia prosa para pedir seus
chinelos, e Hitler, para declarar guerra à Polônia. O escritor é um falador;
designa, demonstra, ordena, recusa, interpela, suplica, insulta, persuade,
insinua. Se o faz
no vazio, nem por isso se torna poeta: é um prosador que
fala para não dizer nada. Já vimos suficientemente a linguagem pelo avesso;
convém agora considerá-la do lado direito [5].
A arte da prosa se exerce sobre o discurso, sua matéria é
naturalmente significante: vale dizer, as palavras não são, de início, objetos,
mas designações de objetos. Não se trata de saber se elas agradam ou desagradam
por si próprias, mas’ sim se indicam corretamente determinada coisa do mundo ou
determinada noção. Assim, acontece com freqüência que nos encontremos de posse
de determinada idéia que nos foi comunicada por palavras, sem que nos possamos
lembrar de uma só das palavras que a transmitiram. A prosa é antes de mais nada
uma atitude do espírito; há prosa quando, para falar como Valéry, nosso olhar
atravessa a palavra como o sol ao vidro. Quando se está em perigo ou
dificuldade, empunha-se um instrumento qualquer. Passada a dificuldade, nem nos
lembramos mais se foi um martelo ou um pedaço de lenha. Aliás, nem chegamos à
sabê-lo: faltava apenas um prolongamento do nosso corpo, um meio de estender a
mão até o galho mais alto; era um sexto dedo, uma terceira perna- em suma, uma
pura função que assimilamos. Assim a linguagem: ela é nossa carapaça e nossas
antenas, protege-nos contra os outros e informa-nos a respeito deles, é um prolongamento
dos nossos sentidos. Estamos na linguagem como em nosso corpo; nós a sentimos
espontaneamente ultrapassando-a em direção a outros fins, tal como sentimos as
nossas mãos e os nossos pés; percebemos a linguagem quando é o outro que a
emprega, as sim como percebemos os membros alheios. Existe a palavra vivida e
a palavra encontrada. Mas nos dois casos isso se dá no curso de uma atividade,
seja de mim sobre os outros, seja do outro sobre mim. A fala é um dado momento
particular da ação e não se compreende fora dela. Sabemos que certos afásicos
perdem a possibilidade de agir, de entender as situações, de manter relações
normais com o sexo oposto. No seio dessa apraxia, a destruição da linguagem
parece apenas o desmoronamento de uma das estruturas: a mais fina e mais
aparente. E se a prosa não é senão o instrumento privilegiado de certa
atividade, se só ao poeta cabe contemplar as palavras de maneira
desinteressada, temos o direito de perguntar ao prosador antes de mais nada:
com que finalidade você escreve? Em que empreendimento você se lançou e por que
necessita ele do recurso à escrita? E em caso algum esse empreendimento poderia
ter como finalidade a pura contemplação. Pois a intuição é silêncio e a
finalidade da linguagem é comunicar. O prosador pode, sem dúvida, fixar os
resultados da intuição, mas nesse caso bastarão algumas palavras atiradas às
pressas no papel: o autor sempre se reconhecerá nelas. Se as palavras se
articulam em frases, com uma preocupação pela clareza, é preciso que intervenha
uma decisão estranha à intuição, à própria linguagem: a decisão de comunicar
aos outros os resultados obtidos. Em cada caso, é essa a decisão que cabe
questionar. E o bom senso, que os nossos doutos tão facilmente esquecem, não se
cansa de repeti-lo. Pois não é costume colocar para todos os jovens que se
propõem a escrever esta questão de princípio: “Você tem alguma coisa a dizer?’”
Por aí deve-se entender: alguma coisa que valha a pena ser comunicada. Mas como
compreender o que ”vale a pena”, se não recorrendo a um sistema de valores
transcendente?
Aliás, se considerarmos apenas essa estrutura secundária do
empreendimento que é o momento verbal, o grave erro dos estilistas puros é
acreditar que a fala é apenas um zéfiro que perpassa ligeiramente a superfície
das coisas, que as aflora sem alterá-las. E que o falante é pura testemunhaque
resume numa palavra sua contemplação inofensiva. Falar é agir; uma coisa
nomeada não é mais inteiramente a mesma, perdeu a sua inocência. Nomeando a
conduta de um indivíduo, nós a revelamos a ele; ele se vê. E como ao mesmo
tempo a nomeamos para todos os outros, no momento em que ele se vê, sabe que
está sendo visto; seu gesto furtivo, que dele passava despercebido, passa a
existir enormemente, a existir para todos, integra-se no espírito objetivo,
assume dimensões novas, é recuperado. Depois disso, como se pode querer que ele
continue agindo da mesma maneira? Ou irá perseverar na sua conduta por
obstinação, e com conhecimento de causa, ou irá abandoná-la. Assim, ao falar, eu
desvendo a situação por meu próprio projeto de mudá-la; desvendo-a a mim mesmo
e aos outros, para mudá-la; atinjo-a em pleno coração, transpasso-a e fixo-a
sob todos os olhares; passo a dispor dela; a cada palavra que digo, engajo-me
um pouco mais no mundo e, ao mesmo tempo, passo a emergir dele um pouco mais,
já que o ultrapasso na direção do porvir. Assim, o prosador é um homem que
escolheu determinado modo de ação secundária, que se pode ria chamar de ação
por desvendamento. É legítimo, pois, propor-lhe esta segunda questão: que
aspecto do mundo você quer desvendar, que mudanças quer trazer ao mundo por
esse desvendamento? O escritor “engajado” sabe que a palavra é ação: sabe que
desvendar é mudar e que não se pode desvendar senão tencionando mudar. Ele
abandonou o sonho impossível de fazer uma pintura imparcial da Sociedade e da
condição humana. O homem é o ser em face de quem nenhum outro ser pode manter a
imparcialidade, nem mesmo Deus. Pois Deus, se existisse, estaria, como bem
viram certos místicos, em situação em relação ao homem. E é também o ser que
não pode sequer ver uma situação sem mudá-la, pois o seu olhar imobiliza,
destrói, ou esculpe, ou, como faz a eternidade, trans forma o objeto em si
mesmo. É no amor, no ódio, na cólera, no medo, na alegria, na indignação, na
admiração, na esperança, no desespero que o homem e o mundo se revelam em sua
verdade. Sem dúvida, o escritor engajado pode ser medíocre, pode ter até mesmo
consciência de sê-lo, mas como não seria possível escrever sem o propósito de
fazê-lo do melhor modo, a modéstia com que ele encara a sua obra não deve
desviá-lo da intenção de construí-la como se ela devesse atingir a máxima
ressonância. Nunca deve dizer: “Bem, terei no máximo três mil leitores”; mas
sim, “o que aconteceria se todo o mundo lesse o que eu escrevo?” Ele se lembra
da frase de Mosca diante do coche que levava Fabrício e Sanseverina: “Se a
palavra Amor vier a surgir entre eles, estou perdido”. Sabe que ele é o homem
que nomeia aquilo que ainda não foi nomeado, ou que não ousa dizer o próprio
nome; sabe que faz “surgir” a palavra amor e a palavra ódio e, com elas, o amor
e o ódio entre duas pessoas que não haviam ainda decidido sobre os seus
sentimentos. Sabe que as palavras, como diz Brice-Parain, são “pistolas
carregadas”. Quando fala, ele atira. Pode calar-se, mas uma vez que decidiu
atirar é preciso que o faça como um homem, visando o alvo, e não como uma
criança, ao acaso, fechando os olhos, só pelo prazer de ouvir os tiros.
Tentaremos mais adiante determinar qual poderia ser o objeto da literatura. Mas
desde já podemos concluir que o escritor decidiu desvendar o mundo e
especialmente o homem para os outros homens, a fim de que estes assumam em face
do objeto, assim posto a nu, a sua inteira responsabilidade.: Ninguém ·pode
alegar ignorância da lei, pois existe um código e a lei é coisa escrita: a
partir daí, você é livre para infringi-la, mas sabe os riscos que corre. Do
mesmo modo, a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo
e considerar-se inocente diante dele. E uma vez engajado no universo da
linguagem, não pode nunca mais fingir que não sabe falar: quem entra no
universo dos significados, não consegue mais sair; deixemos as palavras se
organizarem em liberdade, e elas formarão frases, e cada frase contém a
linguagem toda e remete a todo o universo; o próprio silêncio se define em
relação às palavras, assim como a pausa, em música, ga nha o seu sentido a
partir dos grupos de notas que a circundam. Esse silêncio é um momento da linguagem;
calar-se não é ficar mudo, é recusar-se a falar- logo, ainda é falar.
Portanto, se um escritor decidiu calar-se diante de determinado as pecto do
mundo, ou, como diz uma locução corrente, particularmente expressiva, decidiu
deixar passar em silêncio, é legítimo propor-lhe uma terceira questão: por que
você falou disso e não daquilo, e já que você fala para mudar, por que deseja
mudar isso e não aquilo?
Nada disso impede que haja a maneira de escrever. Ninguém é
escritor por haver decidido dizer certas coisas mas por haver decidido dizê-las
de determinado modo. E o estilo, decerto, é o que determina o valor da prosa.
Mas ele deve passar despercebido. Já que as palavras são transparentes e o
olhar as atravessa, seria absurdo introduzir vidros opacos entre elas. A beleza
aqui é apenas uma força suave e insensível. Sobre uma tela, ela explode de
imediato; num livro ela se esconde, age por persuasão como o charme de uma voz
ou de um rosto; não constrange, mas predispõe sem que se perceba, e acreditamos
ceder a argumentos quando na verdade estamos sendo solicitados por um encanto
que não se vê. A etiqueta da missa não é a fé, ela predispõe para a fé; a
harmonia as palavras, sua beleza, o equilíbrio das frases predispõem as paixões
do leitor, sem que este se dê conta, organizam-nas como faz a missa, como a
música, como uma dança; se o leitor passa a considerá-las por elas mesmas,
perde o sentido; restam apenas cadências tediosas. Na prosa, o prazer estético
só é puro quando vem por acréscimo. É constrangedor lembrar aqui idéias tão
simples, mas parece que hoje em dia elas foram esquecidas. Se assim não fosse,
como viriam nos dizer que estamos premeditando o assassinato da literatura ou
mais simplesmente, que o engajamento prejudica a arte de escrever? Se a
contaminação de determinada prosa pela poesia não tivesse embaralhado as idéias
dos nossos críticos, pensa riam eles em nos atacar quanto à forma, sendo que
nunca falamos senão do conteúdo? Quanto à forma, não há nada a dizer de antemão
e nada dissemos: cada um inventa a sua e só de pois é que se julga. É verdade
que os temas sugerem o estilo, mas não o comandam: não há temas situados a
priori fora da arte literária. O que pode haver de mais engajado, mais tedioso,
do que o propósito de atacar a Companhia de Jesus? Pois Pascal fez com isso
suas Provinciales [Provinciais]. Em suma, trata-se de saber a respeito de que
se quer escrever: de borboletas ou da condição dos judeus. E quando já se sabe,
resta decidir como se escreverá. Muitas vezes ocorre que as duas escolhas sejam
uma só, mas jamais, nos bons autores, a segunda precede a primeira. Sei que
Giraudoux dizia: “A única tarefa é encontrar o estilo; a idéia vem depois”. Mas
ele estava enganado: a idéia não veio. Se os temas forem considerados como problemas
sempre em aberto, como solicitações, expectativas, compreenderemos que a arte
não perde nada com o engajamento; ao contrário. Assim como a física submete aos
matemáticos novos problemas, que os obrigam a produzir uma simbologia nova,
assim também as exigências sempre novas do social ou da metafísica obrigam o
artista a descobrir uma nova língua e novas técnicas. Se não escrevemos mais
como no século XVII, é porque a língua de Racine ou de Saint-Evremond não se
presta para falar de locomotivas ou do proletariado. Depois disso, os puristas
talvez nos proíbam de escrever sobre locomotivas. Mas a arte nunca esteve do
lado dos puristas .
Se este é o princípio do engajamento, que objeções lhe
poderão ser feitas? E, sobretudo, que objeções já lhe foram feitas? Parece que
os meus adversários não estavam com muita disposição para a tarefa, e seus
artigos não continham mais que um longo suspiro escandalizado, que se arrastava
por duas ou três colunas. Gostaria de saber em. nome de quê, de qual concepção
da literatura eles me condenavam; mas não o disseram, eles mesmos não sabiam. O
mais conseqüente teria sido basear seu veredicto na velha teoria da arte pela
arte. Mas nenhum deles aceitaria. É uma teoria igualmente incômoda. Sabe-se que
arte pura e arte vazia são a mesma coisa, e que o purismo estético foi apenas
uma brilhante manobra defensiva dos burgueses do século passado, que achavam
melhor ser denunciados como filisteus do que como exploradores. É preciso, pois
– e eles próprios o reconhecem -, que o escritor fale de alguma coisa. Mas de
quê? Creio que o seu embaraço se ria extremo se Fernandez não tivesse
encontrado para eles, após a Primeira Guerra, a noção demensagem. O escritor de
hoje, dizem eles, não deve em caso algum ocupar-se das coisas temporais; não
deve tampouco alinhar palavras sem significado, nem procurar apenas a beleza
das frases e das imagens: a sua função é passar mensagens aos seus leitores.
Que vem a ser, então, uma mensagem?
É preciso lembrar que a maioria dos críticos são homens que
não tiveram muita sorte na vida, e que quando já estavam à beira do desespero,
encontraram um lugarzinho tranqüilo como guarda de cemitério. Deus sabe quanto
os cemitérios são tranqüilos: não existem mais ridentes que uma biblioteca. Os
mortos lá estão: nada mais fizeram senão escrever, há muito tempo estão lavados
do pecado de viver, c, ele resto, só conhecemos as suas vidas através de outros
livros que outros mortos escreveram a seu respeito. Rimbaud está morto. Mortos
Paterne Berrichon e Isabelle Rimbaud; os importunos desapareceram, só restam
pequenos ataúdes dispostos sobre tábuas ao longo dos muros, como as urnas de um
columbário. O crítico vive mal; sua mulher não o aprecia como seria de se
desejar, seus filhos são ingratos, os fins de mês são .difíceis. Mas ele ainda
pode entrar em sua biblioteca, apanhar um livro na estante e abri-lo. Do livro
escapa um leve odor de porão, e tem início, então uma estranha operação que ele
decidiu chamar de leitura. Por um lado, é uma possessão; empresta-se o corpo
aos mortos para que possam reviver. Por outro, é um contato com o além. De
fato, o livro não é um objeto, tampouco um ato, nem sequer um pensamento:
escrito por um morto acerca de coisas mortas, não tem mais nenhum lugar nesta
terra, não fala de nada que nos interesse diretamente; entregue a si mesmo, ele
se encarquilha e desmorona, não restam mais que manchas de tinta sobre o papel
embolorado, e quando o crítico reanima essas manchas, transformando-as em
letras e palavras, estas lhe falam de paixões que ele não sente, de cóleras sem
objeto, de temores e esperanças defuntas. É todo um mundo desencarnado que o
rodeia, um mundo em que as afeições humanas, como não comovem mais, passaram à
categoria de afeições exemplares, em suma, de valores. As sim ele se convence
de haver entrado em contato com um mundo inteligível que é como que a verdade e
a razão de ser dos seus sofrimentos cotidianos. Acredita que a natureza imita a
arte, como para Platão o mundo sensível imitava o dos arquétipos. E enquanto
lê, sua vida cotidiana se torna aparência. Aparência sua mulher rabugenta,
aparência seu filho corcunda: e que serão salvas porque Xenofonte descreveu
Xantipa, e Shakespeare retratou Ricardo III. É uma festa para ele quando os
autores contemporâneos lhe fazem o favor de morrer: seus livros, muito crus,
muito vivos, muito exigentes, passam para a outra margem, emocionam cada vez
menos e se tornam cada vez mais belos: após uma breve temporada no purgatório,
irão povoar o céu inteligível de novos valores. Berotte, Swann, Siegfried,
Bella e Monsieur Teste: eis algumas aquisições recentes. Aguardam-se Nathanael
e Ménalque. Quanto aos escritores que se obstinam em viver, pede-se apenas que
não se agitem demasiado, e que se empenhem desde já tem se parecer com os
mortos que futuramente serão. Valéry saiu-se bastante bem, pois vinha
publicando livros póstumos há vinte e cinco anos. Eis por que, como acontece
com alguns santos de fato excepcionais, foi canonizado em vida. Mas Malraux
escandaliza. Nossos críticos são como os hereges cátaros: não querem ter nada a
ver com o mundo real, salvo comer e beber, e já que é imperiosamente necessário
conviver com os nossos semelhantes, decidiram fazê-lo com os defuntos. Só se
apaixonam pelos assuntos arquivados, pelas questões fecha-las, pelas histórias
de que já se conhece o fim. Nunca apostam 11um desfecho incerto, e como a
história decidiu por eles, como os objetos que aterrorizavam ou indignavam os
autores lidos por eles já desapareceram, como a dois séculos de distância a
vaidade das disputas sangrentas aparece com clareza, podem encantar-se com a
cadência das frases, e tudo se passa, a seus olhos, como se toda a literatura
fosse apenas uma vasta tautologia e cada novo prosador tivesse inventado uma
nova maneira de falar para não dizer nada. Falar dos arquétipos, e da “natureza
humana”, falar para não dizer nada? Todas as concepções dos nossos críticos
oscilam entre essas duas idéias. Naturalmente, ambas são falsas: os grandes
escritores queriam destruir, edificar, demonstrar. Mas nós não guardamos as
provas que apresentaram, porque não nos preocupamos com o que eles quiseram
provar. Os abusos que denunciaram não são mais do nosso tempo; hoje há outros
que nos indignam e que eles nem sequer imaginavam; a história desmentiu algumas
de suas previsões, e aquelas que se realizaram se tornaram verdadeiras há tanto
tempo que já nos esquecemos de que foram, antes, traços do seu gênio; alguns
dos seus pensamentos estão inteiramente mortos, e há outros que o gênero humano
inteiro assimilou e que agora tomamos como lugares-comuns. Segue-se que os
melhores argumentos desses autores perderam a sua eficácia; hoje admiramos
apenas a sua ordem e o seu rigor; por mais bem estruturados que sejam, para nós
não passam de ornamento, uma arquitetura elegante da demonstração, sem mais
aplicação prática do que a arquitetura das fugas de Bach ou dos arabescos de
Alhambra.
Nessas geometrias apaixonadas, quando a geometria não
convence mais, a paixão ainda comove. Ou antes, a representação da paixão. As
idéias se tornaram insossas ao longo dos séculos, mas permanecem como pequenas
obstinações pessoais de um homem que foi de carne e osso; por trás das razões
da razão, que esmaecem, percebemos as razões do coração, as virtudes, os vícios
e essa grande dor que os homens têm de viver. Sade fez tudo para nos convencer
e, quando muito, consegue nos escandalizar: não é mais que uma alma corroída
por um belo mal, uma ostra que produz pérolas. A Lettre sur les spectacles
[Carta sobre os espetáculos] não dissuade mais ninguém de ir ao teatro, mas
achamos divertido saber que Rousseau detestava a arte dramática. Se formos um
pouco versados em psicanálise, nosso prazer será perfeito: explicaremos Du
contrat social [Do contrato social] pelo complexo de Édipo e L ‘esprit des lois
[O espírito das leis] pelo complexo de inferioridade; isto é, desfrutaremos
plenamente da reconhecida superioridade que os cães vivos têm sobre os leões
mortos. Assim, quando um livro apresenta pensamentos inebriantes que oferecem a
aparência de razões só para se dissolverem sob o nosso olhar e se reduzirem às
batidas do coração, quando o ensinamento que se pode extrair dele é
radicalmente diferente daquele que o autor quis dar, chama-se a esse livro
mensagem. Tanto Rousseau. pai da Revolução Francesa, como Gobineau, pai do
racismo, nos enviaram mensagens. E o crítico as considera com igual simpatia.
Fossem vivos, ele teria de optar por um contra o outro, amar a um, odiar o
outro. Mas o que os aproxima, antes de mais nada, é que eles compartilham ele
um mesmo defeito, profundo e delicioso: ambos estão mortos.
Assim, deve-se recomendar aos autores contemporâneos que
passem mensagens, isto é, que limitem voluntariamente seus escritos à expressão
involuntária de suas almas. Digo in voluntária porque os mortos, de Montaigne a
Rimbaud, pintaram a si mesmos por inteiro, mas não intencionalmente e como por
acréscimo; justamente isso que nos legaram a mais, sem querer, é que deve
constituir o fim primordial e confesso dos escritores vivos. Não se exige deles
que nos entreguem confissões sem retoques, nem que se abandonem ao lirismo
demasiado nu dos românticos. Mas já que temos prazer em desarmar as artimanhas
de Chateaubriand ou de Rousseau, em surpreendê-los na sua privacidade no mesmo
momento em que se fazem de homens públicos, em deslindar as causas particulares
de suas afirmações mais universais, pede-se aos recém-chegados que nos
proporcionem deliberadamente esse mesmo prazer. Que raciocinem, pois, que
afirmem, neguem. refutem e provem; mas a causa que defendem deve ser apenas a
finalidade aparente dos seus discursos: a finalidade pro funda é entregar-se
sem o aparentar. Quanto a seus raciocínios, é preciso que eles primeiro os
desarmem, como fez o tempo em relação aos clássicos; que os apliquem a assuntos
que não interessam a ninguém, ou a verdades tão gerais que os leitores já
estejam convencidos delas antecipadamente; quanto a suas idéias, devem dar a
elas um ar de profundidade. mas vazio, e formá-las de tal maneira que elas se
expliquem, evidentemente, por uma infância infeliz, um ódio de classe ou um
amor incestuoso. Que não se atrevam a pensar de verdade: o pensamento esconde o
homem, e é só o homem que nos interessa. Um soluço totalmente nu não é belo;
ele ofende. Um bom raciocínio também ofende, como Stendhal bem percebeu. Mas um
raciocínio que oculta um soluço, eis o que nos interessa. O raciocínio tira das
lágrimas o que estas têm de obsceno; as lágrimas, revelando a sua origem
passional, tiram do raciocínio o que ele tem de agressivo; não ficaremos muito
comovidos, nem de todo convencidos, e poderemos entregar-nos com segurança
àquela voluptuosidade moderada que, como todos sabem, é proporcionada pela
contemplação das obras de arte. Tal é, pois, a “verdadeira” e “pura”
literatura: uma subjetividade que se entrega sob a aparência ele objetividade,
um discurso tão curiosamente engendrado que equivale ao silêncio; um pensamento
que se contesta a si mesmo, uma Razão que é apenas a máscara da loucura, um
Eterno que dá a entender que é apenas um momento ele História. um momento
histórico que, pelos aspectos ocultos que revela, remete ele súbito ao homem
eterno; um perpétuo ensinamento, mas que se dá contra a vontade expressa
daqueles que ensinam.
Enfim, a mensagem é uma alma feita objeto. Uma alma; e o que
fazer com uma alma? Nós a contemplamos a uma distância respeitosa. Não temos o
costume ele exibir nossa alma em sociedade sem um motivo imperioso. Mas, por
convenção e com algumas reservas, é permitido a algumas pessoas colocar sua
alma em circulação, e qualquer adulto pode adquiri-la. Assim, hoje, para muitas
pessoas, as obras do espírito são pequenas almas errantes que se podem adquirir
por preço módico: há aquela do bom e velho Montaigne, a elo caro La Fontaine; a
ele Jean-Jacques, a ele Jean-Paul e a elo delicioso Gérar. Chama-se arte
literária ao conjunto de beneficiamentos que as tornam inofensivas. Curtidas,
refinadas, quimicamente tratadas, elas fornecem aos seu compradores a
oportunidade ele consagrar à cultura subjetividade alguns momentos de uma vida
inteiramente voltada para o exterior. Pode-se utilizá-las sem perigo: quem
levará a sério o ceticismo ele Montaigne, já que o autor dos Essais [Ensaios]
sentiu medo quando a peste devastava Bordeaux? E o humanismo de Rousseau,
sabendo que “Jean-Jacques” colocou seus filhos num orfanato? E as estranhas
revelações de Sylvie [Sílvia], uma vez que Gérard de Nerval era louco? Quando
muito, o crítico profissional estabelecerá entre eles diálogos infernais e nos
ensinará que o pensamento francês é uma perpétua conversação entre Pascal e Montaigne. Com
isso, a sua intenção não é tornar Pascal e Montaigne mais vivos, mas sim
Malraux e Gide mais mortos. Quando, enfim, as contradições internas ela vida e
da obra tornarem ambas inutilizáveis, quando a mensagem, em sua profundidade indecifrável,
nos tiver ensinado estas verdades capitais: “o homem não é bom nem mau”, “há
muito sofrimento numa viela humana”, “o gênio é só questão de uma longa
paciência”- então o fim último dessa culinária fúnebre será atingido, e o
leitor, repousando seu livro, poderá exclamar, com a alma tranqüila: “Tudo isso
não passa ele literatura”.
Mas uma vez que, para nós, um escrito é uma empreita da,
uma vez que os escritores estão vivos, antes ele morrerem, uma vez que pensamos
ser preciso acertar em nossos livros, e que, mesmo que mais tarde os séculos
nos contradigam, isso não é motivo para nos refutarem por antecipação, uma vez
que acreditamos que o escritor eleve engajar-se inteiramente nas suas obras, e
não como uma passividade abjeta, colocando em primeiro plano os seus vícios, as
suas desventuras e as suas fraquezas, mas sim como uma vontade decidida, como
uma escolha, com esse total empenho em viver que constitui cada um ele nós –
então convém retomar este problema desde o início e nos perguntarmos, por nossa
vez, por que se escreve?
Notas
1 Ao menos em geral. A grandeza e o erro de Klee residem na
sua tentativa de fazer uma pintura que seja ao mesmo tempo signo e objeto.
2 Digo “criar” e não “imitar”, o que basta para reduzir a
nada todo o patético do sr. Charles Estienne, que evidentemente não compreendeu
nada do meu propósito e teima em atacar as sombras.
3 É o exemplo citado por Bataille em L ‘expérience
intérieure [A experiência interior].
4 Caso se queira conhecer a origem dessa atitude em relação
à linguagem, darei aqui algumas breves indicações. Originalmente a poesia cria
o mi to do homem, enquanto o prosador traça o seuretrato. Na realidade, o ato
humano, comandado pelas necessidades, solicitado pelo útil, é. em certo
sentido. um meio. Como tal, passa despercebido, e é o resulta do que conta:
quando estendo a mãopara apanhar a caneta, tenho apenas uma consciência
fugidia e obscura do meu gesto: o que vejo é a caneta. Assim, o homem é
alienado pelos seus fins. A poesia inverte a relação: o mundo e as coisas
passam para o inessencial, convertem-se em pretexto para o ato, que se torna o
seu próprio fim. O vaso existe para que a jovem faça o gesto gracioso de
enchê-lo; a guerra de Troia, para que Heitor e Aquiles travem esse combate heroico.
A ação, desligada dos seus fins, que vão se atenuando, torna-se proeza ou
dança. Contudo, por indiferente que seja ao sucesso elo empreendimento, o
poeta, antes do século XIX, mantém-se em acordo com a sociedade em seu
conjunto; ele não usa a linguagem com a finalidade visada pela prosa, mas
deposita nela a mesma confiança elo prosador.
Após o advento da sociedade burguesa, o poeta faz frente
comum com o prosador e a declara insuportável. Para ele, trata-se ainda de
criar o mito elo homem, mas passa da magia branca para a magia negra. O homem
continua sendo apresentado como o fim absoluto, porém alcançando êxito no seu
empreendimento, ele se atola numa coletividade utilitária. Aquilo que no seu
ato está em segundo plano, e que permitirá a passagem ao mito, não é.
portanto, o sucesso, mas o fracasso.
Somente o fracasso, interrompendo como uma parede a série
infinita elos seus projetos, o devolve a si mesmo, em sua pureza. O mundo
permanece inessencial, mas continua presente; agora, como pretexto para a
derrota. A finalidade da coisa é devolver o homem a si mesmo, barrando-lhe o
caminho. Não se trata, aliás, de introduzir arbitrariamente a derrota e, a
ruína no curso elo mundo, mas antes ele só ter olhos para elas. A empresa
humana tem duas faces: é ao mesmo tempo êxito e úicá so. Para pensá-la, o
esquema dialético é insuficiente: é preciso tornar ainda mais flexível o nosso
vocabulário e as estruturas da nos sa razão. Tentarei qualquer dia descrever
essa estranha realidade, a História, que não é nem objetiva, nem jamais
absolutamente subjetiva, em que a dialética é contestada, penetrada, corroída
por uma espécie de antidialética, que no entanto segue sendo dialética. Mas
essa tarefa é elo filósofo: normalmente não se consideram as duas faces de Jano;
o homem de ação vê uma e o poeta vê a outra. Quando os instrumen tos estão
quebrados, fora de uso, os planos frustrados, os esforços inúteis, o mundo
aparece com um frescor infantil e terrível, sem pontos de apoio, sem caminhos.
Ele tem aí o máximo ele realidade porque é es magador para o homem, e, como a
ação de qualquer modo generaliza. a derrota confere às coisas sua realidade
individual. Mas, por uma in versão prevista, o fracasso considerado como fim
derradeiro é ao mesmo tempo contestação e apropriação desse universo.
Contestação por que o homem vale mais do que aquilo que o esmaga; ele não
contesta mais as coisas em seu “pouco ele realidade”, como o engenheiro ou o
capitão, mas, ao contrário, em seu excesso de realíclacle, exatamente por sua
condição de vencido; o homem é o remorso do mundo. Apropriação porque o mundo,
deixando de ser instrumento do êxito, torna-se instrumento do fracasso. Ei-lo
percorrido por uma obscura finalidade; o mundo passa a servir por seu
coeficiente de adversidade: tanto mais humano quanto mais hostil ao homem. O
fracasso se transforma em salvação. Não que nos dê acesso a algum plano do
além: por si mesmo, ele oscila e se metamorfoseia. Por exemplo, a linguagem
poética surge das ruínas da prosa. Se é verdade que a palavra é uma traição é
que a comunicação é impossível, então cada vocábulo, por si só, retoma sua
individualidade torna-se instrumento da nossa derrota e receptador do
incomunicável. Não que exista outra coisa a comunicar; é que, tendo malogrado
a comunicação da prosa, é o próprio sentido da palavra que se torna o puro
incomunicável. Assim, o fracasso da comunicação se torna sugestão do
incomunicável; e o projeto de utilizar as palavras, contrariado, dá lugar à
pura intuição desinteressada da fala. Assim, voltamos a encontrar a descrição
ensaiada na apresentação desta obra, mas agora sob a perspectiva mais geral da
valorização absoluta elo fracasso, que me parece ser a atitude original da
poesia contemporânea. Note-se também que essa escolha confere ao poeta uma
função muito precisa na coletividade: numa sociedade muito integrada ou
religiosa, o fracasso é mascarado pelo Estado ou resgatado pela Religião; numa
sociedade menos integrada e laica, como são as nossas democracias, cabe à
poesia resgatá-lo.
A poesia é um quem perde ganha. E o poeta autêntico escolhe
perder a ponto de morrer para ganhar. Repito que se trata da poesia
contemporânea; a história apresenta outras formas de poesia. Meu objetivo não é
mostrar os vínculos entre essas outras formas e a nossa. Por tanto, se se
deseja realmente falar do engajamento do poeta, digamos que ele é o homem que
se empenha em perder. É o sentido profundo desse azar, dessa maldição que ele
sempre reivindica e que sempre atribui a uma intervenção do exterior, quando na
verdade é a sua escolha mais profunda – não a conseqüência, mas a própria fonte
da sua poesia. Ele tem certeza do fracasso total da empresa humana e dá um
jeito de malograr na sua própria vida, a fim de testemunhar, por sua derrota
particular, a derrota humana em geral. Ele contesta, pois, comoveremos, assim
como faz o prosador. Mas a contestação da prosa se faz em nome de um êxito
maior, e a da poesia em nome da derrota oculta que toda vitória traz consigo.
5 É claro que em toda poesia está presente uma certa forma
de prosa, isto é, de êxito; e reciprocamente, a prosa mais seca encerra sempre
um pouco de poesia, isto é, certa forma de fracasso: nenhum prosador, mesmo o
mais lúcido, entende plenamente o que quer dizer; ou diz demais, ou não diz o
suficiente, cada frase é um desafio, um risco assumido; quanto mais se vacila,
mais a palavra se singulariza; ninguém, como mostrou Valéry, consegue
compreender uma palavra até o fundo. Assim, cada palavra é empregada
simultaneamente por seu sentido claro e social e por certas ressonâncias
obscuras; eu quase diria: por sua fisionomia. É exatamente a isso que também o
leitor é sensível. E já não estamos mais no plano da comunicação concertada,
mas no da graça e do acaso; os silêncios da prosa são poéticos porque marcam
seus limites, e é por uma questão de clareza que escolhi os casos extremos da
pura prosa e da poesia pura. Não se deveria concluir, porém, que se pode passar
da poesia à prosa por uma série contínua de formas intermediárias. Se o
prosador cultiva demasiadamente as palavras, o eidos “prosa” se rompe e caímos
numa algaravia incompreensível. Se o poeta narra, explica ou ensina, a poesia
se torna prosaica; ele perdeu a partida. Trata-se de estruturas complexas,
impuras mas bem delimitadas.
…
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