O velho e o Guaíba
O velho ficava sentado numa pedra
olhando as águas do guaíba como quem fica olhando para o próprio passado.
Sempre com o semblante triste, sem perceber as horas que passavam. Joaquim já
não sabia o que fazer para alegrar o seu companheiro. Para quem passava pelo
local era só mais um velho mendigo; fedorento, cabisbaixo e inútil. Que enfeava
o pôr do sol do guaíba. Mas Joaquim o tinha como um verdadeiro segundo pai.
Um dia os dois estavam sentados
na mesma pedra e o velho soltou um suspiro muito longo e melancólico como um
gemido que vinha da alma. Joaquim pensou – É agora que ele se vai!
Aquilo fez Joaquim tomar uma
atitude, sem deixar o velho saber. A partir daquele dia, o rapaz começou a
juntar um monte de garrafas PET e a esconder numa moita que tinha nascido em
cima de uns entulhos, não muito longe da orla. Só alguns metros para dentro do
parque Harmonia, o suficiente para outros catadores não encontrarem seu abrigo
de garrafas.
A noite quando voltavam para a
ponte dos açorianos, gostavam de fazer uma pequena fogueira e ficar conversando
até o sono chegar, as moedas que juntavam durante o dia quase sempre dava para
comprar uma garrafa de cachaça, e quando não dava, sempre aparecia um amigo com
uma debaixo do braço. Assim as noites passavam de maneira mais amena, nem as
ratazanas do centro os incomodavam. E a conversa tomava um tom de euforia como
uma verdadeira catarse de suas vidas.
- Velho, - Joaquim disse - porque
você olha tanto o guaíba?
- Porque? Isso lhe incomoda? Ele
disse.
- Me incomoda lhe ver tão triste
ultimamente.
- Mas isso que você acha que é
tristeza, na verdade é nostalgia meu amigo.
- E não é a mesma coisa?
- De certa forma. O velho
respondeu.
- Eu juro que não entendo.
Joaquim disse e tomou um gole direto do gargalo da garrafa de plástico.
- Ando com saudades do tempo que
morava na minha terra. O velho completou.
- Você nunca me falou de onde
era.
- Você também nunca me perguntou.
O velho disse e sorriu para o rapaz.
- Também não gosto de falar do
passado, - Joaquim disse – de que adiante mesmo?
- Eu nasci em Pedro Osório,
conhece? O velho perguntou.
- Não, em que região fica? Eu sou
de Vacaria, norte do estado divisa com Santa Catarina.
- Você é do Norte e eu sou do Sul
do Rio Grande do Sul. Pedro Osório na verdade pertencia aos uruguaios, mas os
gaúchos foram empurrando os uruguaios até depois de Jaguarão.
- Não sei nada do Sul meu velho,
eu sou da terra da maça.
- A divisa antiga entre o Rio
Grande do Sul e o Uruguai era num pequeno arroio, pouco antes de chegar em
Pelotas. O arroio Contrabandista.
- Lá na minha terra é o rio
Pelotas que separa o Rio Grande do Sul de Santa Catarina.
Os dois continuaram conversando e
bebendo, comparando suas terras, suas regiões, suas lembranças e invenções. Que
acabaram esquecendo o motivo inicial da conversa. Quando já estavam embriagados
o suficiente dormiram em cima de seus papelões, com velhos trapos lhes cobrindo.
Nas tardes que se seguiram e em
que a ressaca deixava, Joaquim sumia por uma ou duas horas. O velho ficava
sempre se perguntado “- O porquê de tanto mistério, o que o rapaz estava
aprontando? ”, até que chegou o dia.
O velho estava sentado distraído,
no mesmo lugar de sempre. E Joaquim chegou de surpresa arrastando aquele monte
de garrafas amarradas como se fossem uma porta. O velho levou um susto quando
viu e gritou: - O que é isso Joaquim?
- É um presente meu para ti
alegrar velho. Ele respondeu.
- O que vou fazer com está porta?
- Não é uma porta, é uma jangada.
-
A cachaça já derreteu o teu cérebro Joaquim.
- Vou lhe mostrar! O rapaz gritou
e seguiu na direção da água.
O velho não conseguia parar de
rir, só de imaginar aquela geringonça afundando com o rapaz.
Mas a geringonça funcionou e
Joaquim, começou a remar com um pedaço de madeira. Indo de um lado ao outro.
Depois de sua demonstração, foi a
vez do velho. Os dois amigos passaram a tarde se divertindo com a jangada de
garrafas plásticas....
A ideia deu tão certo que o velho
tornou aquela brincadeira um abito diário.
As pessoas passavam e ficavam
admiradas, como o negócio não afundava ninguém conseguia entender. Tiravam até
fotografias do velho e sua jangada.
Numa das tardes em que o velho já
estava saindo do guaíba, um turista apareceu e pediu para tirar uma foto com
ele e sua jangada. Lhe dando depois uma nota de R$ 20,00. Joaquim ficou olhando
sem acreditar.
Os dois amigos resolveram então
passar num armazém e comprar um pedaço de costela de boi e um garrafão de
vinho.
- Hoje vamos festejar Joaquim! O velho
gritou, levantando o garrafão para céu.
- Vamos nessa velho, - o rapaz
disse, mas logo se lembrou – aonde vamos assar?
- No lugar de sempre!
- Mas é pouco e se aparecer mais
gente?
- Vamos então nas churrasqueiras
do Harmonia.
- Boa ideia.
E assim eles foram em direção ao
parque Harmonia.
Ali eles podiam ficar no meio das
árvores sem chamar a atenção dos outros mendigos. Pelo menos dos mendigos
conhecidos. Já que a maioria dos mendigos andava sempre na mesma região. Uma lua
cheia iluminava a noite entre as árvores. O crepitar dos pedaços de árvores
secas queimando, o cheiro da lenha, o braseiro se formando. Tudo aquilo trazia
lembranças de um tempo bom. Enquanto um espetava a carne num ferro de obras e o
outro ia cuidando do fogo. Eles iam conversando e bebendo.
- Você tinha falado que Vacaria é
a terra da maça. O velho disse.
- Sim, até o meu pai trabalhou
nos pomares de maças, um trabalho horrível.
- Muito cansativo?
- O problema não era apenas ser
cansativo, mas é muito veneno que eles botam nas macieiras.
- É a mesma coisa na minha
região, só que lá é arroz que plantam. Imagina a quantidade de veneno que eles põem
nas lavouras e depois você tem que ficar andando naquela água cheia de veneno.
- Meu pai morreu por causa do
veneno, o patrão dele mandava aplicar veneno com o trator direto. E muitas
vezes o pessoal estava no meio da lavoura e o trator passava e dava um banho de
veneno no pé de maça e o que estivesse na volta. Nos pés das macieiras o meu
pai fazia muita capina química com o costal, e o velho só andava de bermuda e
pé no chão, no verão. O patrão sempre dizia que o remédio era bem fraquinho.
Meu pai acreditava no patrão.
- Imagino, lá na minha terra
muita gente morreu por causa dessas porcarias.
- Mas o que me magoa de verdade, não
é ele ter morrido por causa do veneno, mas o que escreveram no atestado de óbito
dele.
- E o que escreveram?
- O médico safado colocou que ele
tinha morrido de cirrose, e o meu pai nem bebia, o velho era crente. Depois é
que eu fiquei sabendo que o patrão tinha pago o médico. E para eu não fazer
nenhuma bobagem vim tentar a sorte em Porto Alegre.
- Já eu não tinha vontade de
trabalhar na lavoura de arroz e nem nas olarias, então acabei aqui também. Não consegui
emprego, perdi o pouco dinheiro que tinha trazido e acabei desse jeito.
- Tu achas que as coisas vão
mudar velho?
- Não acredito Joaquim, mas um
dia quero voltar para Pedro Osório e ver se ainda existe alguém que se lembre
de mim. O velho disse e sorriu, um sorriso amargurado.
- Quem sabe, né meu amigo.
- Eu só sei que quem acha que
Porto Alegre é uma festa se engana.
- É verdade Hemingway. O rapaz
disse.
- Quem?
- Um escritor americano que viveu
uns tempos na França.
- A cada dia você me surpreende
mais Joaquim.
- Posso ter estudado até a quarta
série, mas sempre gostei de ler.
- Você é uma caixinha de
surpresas.
- Velho agora você só precisa
pegar um peixe grande. Joaquim disse.
Os dois continuaram bebendo em
silêncio enquanto a carne aprontava.
Fim.
Röhrig C.
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