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DICA DO DIA

Quase um romance



Quero contar as impressões de uma noite, do jeito que tudo aconteceu feito um blues. Uma destas noites que não se esquece. Aquela sensação de estar no paraíso e descer ao inferno, ou estar no inferno pensando que é o paraíso. O frio e a solidão que sentia caminhando pelas ruas de Pelotas, sem nenhuma lógica ou destino, exercendo a arte de caminhar a esmo. Da mesma inútil maneira que sempre caminhei por todas as cidades, sempre gostei de pensar que era um tipo de andarilho, andando à margem, sendo diferente, um tipo especial.
Era uma noite sem muitas esperanças, tudo tão calmo e silencioso pela cidade. Podia escutar o barulho de um cachorro urinando na roda de um carro a duas quadras de distância. Tinha minha percepção aumentada mil vezes e este brilho estranho no olhar. Aquele olhar vítreo, quando você consegue enxergar tudo de forma muito limpa e clara. A noite é dos poetas e dos bêbados, e sempre tive estas duas qualidades. Comecei a divagar a ideia maluca de um poema “O coração da cidade se esconde nos lugares mais sórdidos, escuros. Não temos espaço para máscaras e nem jogos, e jogamos bem com nossas engrenagens e disfarces. A realidade é um brinde violento. O coração dispara, sentimos que a vida flui do improvável, do caos, como a noite é mágica em sua simples tarefa de existir.”
Espreito o indivisível. Todos têm um lugar comum, por onde passa a humanidade dos nossos sentimentos, uma manada de elefantes gordos e preguiçosos. Os domesticamos da maneira mais cruel com uma lista interminável de subterfúgios e desculpas. Sempre existe uma desculpa para não arriscarmos. Estava tão cansado e perdido que já nem sabia em que parte da cidade eu estava. Não que fosse fazer diferença, todas as ruas pareciam iguais. No final da rua avistei um pequeno letreiro em néon azul. Um Oásis para este ser sedento e faminto. Estava perdido no deserto urbano, abandonado dos meus próprios sentimentos e novos sentimentos tomavam lugar, misturando tudo.
Estava com sede, curioso para ver aquele bar por dentro. Ficava rodeado por casebres e galpões, numa rua de poucos amigos. Existem ruas que você entra, mas não sabe como vai sair e aquela é uma deste tipo. Ali apenas o que há de pior encontra abrigo, eu sabia disso. E este foi o motivo pelo qual entrei no bar. Durante o dia ninguém notaria o bar, sem movimento, o letreiro apagado. Apenas mais uma porta.
Quando passei pela porta, senti que o movimento andava fraco, já sabia que era perfeito, sombrio, sujo e com um toque de crueldade. Existia vida naquele lugar. Você pode matar alguém num lugar destes e no máximo o garçom vai te pedir para não quebrar nada.  O que tinha depois da porta não me surpreendeu em nada, na realidade esperava que fosse do jeito que tinha que ser. Mesas espalhadas pelos cantos, tapete vermelho desbotado e queimado pelas baganas de cigarro, as traças tinham feito um bom trabalho em tudo que envolvia algum tipo de tecido, tapete, cortina, toalhas, tudo estava assinado por elas. O tapete vermelho começava na porta e ia mergulhando até o fundo do bar, seu auge era no balcão de madeira, desbotado, manchado, na tampa do balcão dava para se ver a marca de onde ficavam algumas garrafas, uma grossa camada de poeira misturada com gordura e cerveja cobria a tampa do balcão. Me lembrou aquelas casas mal assombradas dos parques de diversão. O garçom era um sujeito típico daquele lugar, pálido, alto, e exageradamente magro com aspecto cadavérico e com um sorriso frio como aqueles personagens que você encontra numa curva em uma viagem no trem fantasma, os braços longos e a camisa justa davam um aspecto cômico e trágico. Dava as boas vindas, enquanto secava um copo de chopp. Eu fiquei parado olhando para ele sem acreditar que o sujeito estivesse vivo, pensei até que ele deveria ser um boneco de cera. A atmosfera do local era abafada, sombria, cheirando a mofo, cigarro, trago, sexo e morte.
- Uma cerveja, garoto? - Gritou o garçom.
- Pode ser, meu amigo. - Respondi e fui me aproximando do balcão.
Quis bancar o durão e tomei a cerveja encostado no balcão, eu era o cara, curtido pela noite, experiente. Podia foder todas as putas dali e não pagar nenhuma. Ainda seria capaz de pegar a grana do cafetão. Mas, só nos meus pensamentos. Dei um tempo apreciando a decoração, os espelhos, iluminação, música. Quando corri meu olhar por todos os lados parando numa mesa. Havia uma mulher nesta mesa que ficava no canto mais escuro, e percebi que me olhava. Não sei se realmente olhava pra mim, não enxergava seus olhos direito na penumbra. Mas, gostei de fantasiar a cena e imaginar que ela me queria. Ela podia querer a minha grana ou apenas consolar um sujeito carente. As mulheres adoram a minha cara de bom garoto com olhar triste, sempre funciona. Por outro lado, acaba com a minha pose de durão vigarista.
Tomei com vontade minha cerveja, nem reclamei o cheiro de gordura de galinha que tinha o copo, tinha tanta gordura no copo que minhas digitais ficaram impressas perfeitamente, terminei a cerveja. Dei uma cheirada no copo e larguei no balcão. Acendi um cigarro e pedi para o garçom levar uma cerveja até a mesa da mulher.
O sujeito apenas sacudiu a cabeça concordando e voltou a limpar os copos, como se nada o abalasse. Deve ter repetido aquela mesma cena por intermináveis noites, mudando apenas o rosto do sujeito no balcão e a mesma mulher na penumbra que já deveria estar ali antes mesmo da terra ser criada. Um espectro dos nossos desejos mais íntimos e primitivos.
Ninguém decente ou sano entraria num lugar daqueles, uma cena de um filme de terror em preto e branco, muitas expressões faciais, mas nenhum som. Enquanto caminhava na direção da mesa, sentia como se alguma criatura criasse vida, pronta para sair das sombras e me atacar. Já vi filmes antigos que tinham a mesma atmosfera, um jogo de sombras e a fumaça azul do cigarro se misturando e dissipando. Talvez apenas um filme policial onde um inocente é assassinado no início das primeiras cenas por engano, um personagem coadjuvante e sem maiores detalhes. E no final descobrimos que o sujeito era a peça principal do jogo. A cada passo a distância ia aumentando, meus pensamentos se tornando gigantes, uma onda absurda de ideias confusas. Mas havia uma promessa bem no íntimo de que tudo acabaria bem. Tinha apenas que terminar o caminho. Perdi a nuance do que pretendia e segui em frente tentando focar em meus desejos básicos. Comecei a recitar um mantra em minha mente, afastando os fantasmas “Que se foda é apenas mais uma puta! O dinheiro é a maneira universal de comunicação.”
Tenho que explicar que ando estranho ultimamente, sem muito assunto. Desenvolvi alguma virose. Finalizei o percurso, e nenhum monstro saltou das sombras, nem o brilho de uma navalha, ou gritos ecoaram das esculturas na parede. Ali estávamos os dois sentados sem pronunciar nenhuma palavra, apenas olho no olho. Ajeitei melhor minha cadeira ao seu lado e coloquei minha mão em sua coxa, a temperatura morna da pele dava uma sensação agradável. Mostrou seus dentes brancos em um sorriso de consentimento e de convite. Tinha encontrado uma puta de classe, não podia negar, com aquele sorriso e dentes tão brancos.
Continuamos nossa brincadeira amorosa, subi minha mão um pouco mais, sentindo sua carne macia e morna, enquanto ela acendia um cigarro.
- Podemos beber agora? - Falei, lhe dando um leve apertão na coxa.
- Adoraria uma cerveja, e você o que quer?
- Tudo, mas por hora apenas beber mais um pouco.
- Nunca te vi antes aqui!
- Eu me perdi e acabei vindo parar aqui.
- Você não parece deste tipo.
- Que tipo eu pareço?
- Apenas confuso, mas eu gosto de você.
- Temos alguma coisa em comum, eu também gosto de mim.
- Você gosta de brincar?
- Sempre falo sério, e você?
- Eu? Apenas o que você quiser.
- Qual o seu nome? O meu é Jeux.
- E precisa? Qual você quer? Nunca conheci ninguém com um nome parecido com o seu.
- É que sou único. Posso chamar você de Violência.
- Posso ser violenta. Mas posso ser doce também, depende do que você está procurando.
- Você não teria o que eu preciso.
- Tente, posso lhe surpreender.
O garçom chegou com mais duas garrafas de cerveja e uma de uísque.
- O uísque é por conta da casa. O garçom disse.
- Pensei que você fosse mudo, pode colocar aí. - Apontei para a mesa. Um sujeito estranho.
Colocou a bandeja no centro da mesa e voltou para o balcão da mesma forma fantasmagórica com que chegou. Devo ter encontrado um bar no inferno, aquele lugar não podia ser real, nada ali fazia sentido e ao mesmo tempo tinha tudo de mais comum, aquela noite estava sendo estranha.
Percebi que na bandeja tinha uma pequena taça com um licor verde fosforescente, as garrafas o estavam encobrindo. O velho e bom licor é sempre a mesma história. Todos os atores sabem o que esperar. Devemos representar nossos papéis sempre da melhor maneira. Já deveria estar acostumado.
Um jogo de adivinhação. Tentar pensar, que até às vezes o fato de adivinhar o que se pensa e ficar fazendo contas. E no final descobrir que não fazem sentido os pensamentos. Posso ficar horas divagando sem chegar a nenhum lugar. Eu tinha uma história triste para aquela mulher, com uma enciclopédia bem embaixo do seu nariz e disfarçada naquele líquido verde e estranho. Tudo que precisava naquele sonho etéreo, só podia ser mais sonho. Apertar mais sua carne, sentir seu calor e ficar satisfeito em minha própria solidão.
Eu a imaginei e também toda sua intimidade agachada, em algum terreno baldio dando uma bela mijada verde. Ela deveria ter o sangue e todas as suas secreções da cor daquele licor. Mas, seus olhos eram castanho - claros, caramelos.
- Onde ficariam os quartos? - Pensei em voz alta.
- O que?
- Estou curioso para saber onde ficam os quartos.
- Os quartos ficam no fundo do corredor, à direita.
Onde ficariam os quartos afinal, olhei para todos os lados tentando adivinhar. Não tinha nenhum corredor, apenas duas portas. Uma delas deveria levar ao corredor, mas qual? Tinha que ter algum quarto ali. Você paga pela conversa, paga para alisar, paga para meter seu pau dentro, e se quiser algum conforto, paga para dizerem palavras doces e te chamarem de amor. Tudo é pago, até um cafuné tem seu preço. O bar é apenas a teia onde você cai por vontade própria. Sua vida o empurra e você se acha dono da situação. Tudo tem que acontecer ali, uma vez que você sai pela porta a magia se dissipa. E o garçom do balcão fica cuidando do seu investimento. Que é você. Aquele mundo não foi criado para você, ele foi feito e construído por você. Temos que garantir o da casa, é o que passa em sua mente, quando o garçom sorri e lhe oferece algum trago de cortesia.
Perdi a perspectiva dos quartos e comecei procurar a saída, por onde eu tinha entrado. Cada minuto me sentia mais preso a teia, uma sensação viscosa, cercado por olhares de mil aranhas. Meu sangue estava dentro da carteira pronto para ser sugado, até a última nota.
Por alguns instantes fui fisgado de maneira tal, que já nem me importava com mais nada, era carnaval – pensei. Mesmo não sendo a folia estava pronta, ela sabia o que estava fazendo. O profissionalismo do seu olhar dengoso, provocativo, as frase cortadas, tão explícita nas possíveis carícias que seu olhar atiçava, aquela expressão de ausência e ao mesmo tempo tão cúmplice. O cabelo úmido, as unhas compridas arranhando a pele do meu braço, enquanto continuava segurando sua coxa e subia por dentro dela, sumindo naquela minissaia de brim, podia sentir a renda de sua calcinha com a ponta dos meus dedos.
Não percebi quem tinha esvaziado a pequena taça de licor, difícil distinguir a realidade do sonho. Os deuses deveriam estar bêbados ou qualquer outra coisa, quando fizeram a mulher. Em qualquer lugar se pode saber o que acontece, mas a mente de uma mulher é um lugar cheio de mistério.
O álcool tinha feito seu bom trabalho em minha cabeça, todas as sensações misturadas. Comecei a ter vertigens, perder a noção de tempo e espaço, as cores que saiam da escuridão, o cheiro de sexo, sarjeta, umidade e bolor.
Tinha aquela mulher em minhas mãos, isso que importava, e onde estavam minhas mãos. Estava começando a entender o segredo da vida, e por que os homens mijam de pé e as mulheres agachadas. Tudo fazia sentido, até o teto que não parava de girar, e minhas pernas chumbadas no chão. Tinha uma grande vida escatológica e romanesca, era o próprio deus e todos me conheciam, a mulher e o garçom me amavam. Naquela altura tinha se dissipado toda a vingança de minha morte.
Acordei mais tarde no meio da rua caminhando, sem saber por onde tinha andado, apenas fragmentos e lances sem sentido. Voltei para minha casa e me joguei na cama, dormi profundamente. Mais tarde, naquela mesma noite acordei com a música saindo do rádio. Lembrei que era a mesma música que ela sussurrava em meu ouvido, podia sentir o peso de seu hálito, seu sorriso provocante, seus lábios vermelhos borrados, olhos grandes e caramelos, o cabelo longo e preto. Todas aquelas curvas generosas de seu corpo, o valor do seu corpo. Tudo tinha um significado. Tentei acender o abajur, mas a lâmpada estava queimada, a única luz que tinha era a claridade da noite que entrava pela janela e a cortina que desenhava sombras na parede. Tinha ficado completamente embriagado pela escuridão do bar ou tinha apenas me aprofundando em minha própria escuridão? Não sei. O que tinha sido tudo aquilo? – perguntava enquanto tentava levantar e vomitar o mais longe possível. Vomitei em cima da minha roupa que estava jogada do lado da cama.

- Seu nome? - Fico pensando enquanto a música na rádio me provoca, sempre a mesma música e a sensação de lábios que não me tocam, na verdade nunca me tocaram. Viajo na música e na imagem que ela me traz. Nossa vida não passa de uma sucessão de contos, quase um romance sem profundidade. Tudo é tão tranquilo e para a noite que se assemelha a um lago calmo antes da tempestade, nosso coração ainda funciona. Fico divagando. Enquanto na rua passa um carro e a luz dos faróis invade o quarto e vejo em cima do criado mudo a pequena seringa vazia e minha carteira de cigarros. O que mais posso dizer daquela noite?


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